Estreia, no Teatro Aveirense, no próximo dia 8 de setembro (sexta-feira), às 21h00, o espetáculo “As Areias do Imperador”, uma criação de Victor de Oliveira a partir do romance homónimo de Mia Couto. O espetáculo sobe a palco para uma segunda apresentação no dia seguinte, à mesma hora.
Em “As Areias do Imperador”, a ação transporta o espectador para os finais do século XIX, num Moçambique colonial devastado por conflitos e injustiças. No entanto, tal como no romance que lhe serviu de base, nesta peça não são os acontecimentos históricos - nomeadamente, a captura de Ngungunyane, imperador de Gaza, pelo capitão Mouzinho de Albuquerque e a sua posterior deportação para Lisboa e depois para os Açores – a fazer mover a narrativa. “Mia Couto faz algo incrível e, para mim, enquanto encenador, extremamente inspirador” – diz Victor de Oliveira – “coloca no mesmo espaço e na mesma época personagens históricas, como Ngungunyane ou Mouzinho de Albuquerque, e personagens de ficção, como a jovem tradutora Imani. Mas o mais importante é a história de Imani Tsembe. É a vida desta mulher durante todo esse período que vai de 1895 até à independência de Moçambique e das personagens que estão ao seu redor – desde logo, Germano de Melo, um militar branco português com quem ela desenvolve uma história de amor – que são o verdadeiro fio condutor da narrativa”, explica o encenador. “Ao mesmo tempo que nos fala da vida e dos destinos de cada uma dessas personagens, fala-nos da colonização, das contradições da história de um país e de um povo e da forma como portugueses e moçambicanos viveram aquele período”, completa.
As questões que o escritor moçambicano coloca à reflexão através do testemunho das suas personagens ao longo dos três volumes de “As Areias do Imperador, são questões que têm vindo a acompanhar a vida e o trabalho de Victor de Oliveira. No espetáculo “Incêndios” (2019) – estreado em Maputo (Moçambique) e depois apresentado na Culturgest, em Lisboa –, por exemplo, o encenador interrogava os ecos da guerra civil que devastou aquele país africano durante 16 anos. Em “Limbo” (2021) – monólogo levado a palco no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, e depois apresentado em Aveiro, que ganhou os prémios de Melhor Espetáculo e Melhor Texto da Sociedade Portuguesa de Autores – aborda a história colonial portuguesa e moçambicana, levanta questões sobre a mestiçagem e a relação de Portugal com a comunidade moçambicana que fugiu da guerra civil.
Ora, numa altura em que Victor, desejando voltar à temática do passado colonial, procurava uma oportunidade para trabalhar com a equipa de criadores moçambicanos com que desenvolvera os espetáculos anteriores e de lhes juntar uma série de “amigos portugueses” e de técnicos franceses com quem trabalha habitualmente – recorde-se que o ator e encenador nasceu em Moçambique, passou a adolescência em Portugal, mas reside, há mais de duas décadas, em Paris (França) – o romance de Mia Couto impôs-se como o alicerce ideal.
“Ao descobrir ‘As Areias do Imperador’, tive a impressão de descer ainda mais profundamente não apenas na história do meu país, mas na minha própria história”, notou Victor de Oliveira. De certa forma, Imani e Germano podiam ser avós de Victor. “Eu nasci em Moçambique, ainda durante o período colonial, tal como os meus pais. Somos o que se chama mestiços: os meus avôs eram ambos portugueses brancos e as minhas avós moçambicanas negras. Um dos meus avôs, aliás, foi para Moçambique no início do século XX como militar, tal como Germano. Há muito na história daquelas duas personagens de “As Areias do Imperador” que, de uma maneira não muito longínqua, está ligada à minha própria história e às minhas memórias”, esclarece o encenador.
Victor de Oliveira: “É através dos artistas que a sociedade se revê e se redescobre”
Numa crítica a “As Areias do Imperador” assinada por Gladys Mariva, a jornalista do Le Monde descreve Moçambique, depois da independência e da guerra civil, como “uma nação que ainda se procura a si própria”. Victor de Oliveira concorda e acrescenta que a arte desempenha um papel fundamental nesta busca por uma identidade e um desígnio. “É através dos artistas que uma sociedade se revê e se redescobre”, assegura o encenador, recordando o “choque brutal” que foi apresentar o espetáculo “Incêndios”, pela primeira vez, em Maputo. “Pela primeira vez, havia um espetáculo que falava sobre a guerra civil, até aí, um assunto tabu em Moçambique. Nós levámo-lo a palco e, naqueles dias, passou a haver diálogo. A partir do espetáculo, as pessoas começaram a falar: ‘Eu vivi isto’; ‘Eu assisti àquilo’”, relata Victor. “A arte tem essa qualidade de nos fazer ver aquilo que somos, o espaço em que vivemos e as questões que se colocam a cada um de nós e à sociedade como um todo”.
Questionado sobre a forma como portugueses e moçambicanos lidam, nos dias de hoje, com o passado colonial, Victor de Oliveira reconhece que “ainda falta algum tempo” para que todas as feridas possam sarar e, mais do que isso, para que todos saibam lidar com as cicatrizes que essas feridas deixaram. “Talvez não nesta geração, mas na próxima, possa haver uma outra maneira de olhar para este passado com um olhar crítico. Que possamos aceitar o que foi, sem querermos esconder o que quer que seja”, anseia o encenador, alertando que “a pior coisa que podemos fazer é negar o que aconteceu”. “Sempre que vou a Moçambique encontro-me com jovens artistas que me fazem acreditar que o país está a viver um período importante. Há uma juventude que quer muito ultrapassar o passado colonial e pensar em Moçambique como um jovem país africano de feridas cicatrizadas, com muito para fazer e muito para crescer. E eles querem fazer parte desse crescimento”, testemunha.