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Luís Fernandes: “Terá Águeda suficiente vício e necessidade da d’Orfeu?”

Artes

Luís Fernandes é, antes de tudo o resto, músico. A música está-lhe no sangue, à superfície da pele e na ponta da língua; estabeleceu-se, desde muito cedo, na sua rotina familiar; impôs-se-lhe como veículo privilegiado para a interação social; e, da mesma forma que sempre habitou a intimidade do seu lar, acabaria inevitavelmente por lhe moldar o percurso.

Numa infância vivida no seio de uma família de músicos – os irmãos, o pai, os tios, o avô e o bisavô – os instrumentos foram os seus brinquedos: “Debaixo das camas, em cima dos armários, naqueles locais onde, nas casas dos nossos vizinhos ou colegas de escola, se guardavam os brinquedos, havia cavaquinhos, bombos, concertinas...”, recorda Luís, em conversa com a Aveiro Mag.

Para este aguedense, crescer numa família de músicos foi também crescer na tessitura das bandas filarmónicas e grupos folclóricos onde estes atuavam e nos quais a música tradicional era aprendida “de ouvido” ou transmitida oralmente de forma amadora.

No entanto, as vivências no Grupo Típico “O Cancioneiro Infantil de Águeda” e na OTA – Orquestra Típica de Águeda – coletividades com as quais Luís percorreu o país de uma ponta a outra –, bem como as experiências no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, e, mais tarde, na licenciatura em Ensino de Música, na Universidade de Aveiro, deram-lhe mundo, contribuindo para que desenvolvesse “uma visão mais universalista sobre o ensino da música tradicional”. Essa visão seria determinante para a criação da d’Orfeu.

A associação cultural d’Orfeu, um projeto dos quatro irmãos Fernandes – Artur, Vítor (Bitocas), Rogério e Luís – e de alguns amigos, surge em 1995, como escola de música tradicional, com objetivo de proporcionar formação qualificada aos elementos dos grupos folclóricos do concelho de Águeda.

Com a d’Orfeu em plena atividade, em pouco tempo, o tecido de tocadores e músicos naquele concelho cresce exponencialmente em número e em capacidade. “Ainda hoje fazem vida profissional de ser músico de grupos folclóricos. O “concertinista”, por exemplo, é um indivíduo com muita solicitação e procura”, advoga Luís.

Logo no primeiro ano de atividade, a d’Orfeu começou a identificar oportunidades para a capacitação dos seus músicos além da sala de aula e, daí até começarem a promover espetáculos, festivais ou a trazer a Águeda artistas de todo o mundo, foi um saltinho.

Do ano da fundação, Luís recorda “uma casa muito vivida”. Os irmãos Fernandes haviam alugado uma pequena casa junto ao rio (só em 1997 a d’Orfeu passaria para as atuais instalações) na qual reuniam, à noite, com músicos amigos. Do processo de criação da associação à organização das primeiras aulas, passando pelos contactos com os grupos folclóricos a quem queriam dar a conhecer o projeto, 1995 foi passado a construir os alicerces daquela que viria a ser a d’Orfeu. Era um “ambiente de total confiança, tertúlia e partilha”. Naquela pequena casa, recheada às custas da boa vontade de quem ia trazendo umas cadeiras, um sofá ou uma toalha, havia um frigorífico comunitário e o gira-discos tocava junto à janela pela qual o correr do Águeda os saudava a cada serão. “Vivia-se um verdadeiro espírito associativo”, lembra, com saudade.

As primeiras aulas arrancariam ainda em setembro e, a 4 de dezembro daquele mesmo ano, a escritura pública marcaria o nascimento oficial da d’Orfeu.

Luís Fernandes faz parte da d’Orfeu desde a primeira hora. Conhece cada ano, cada mês da vida da associação cultural e, 25 anos depois, por muito que o tente, é difícil dissociar o homem do projeto a que se entregou durante mais de metade da sua vida.

Na viragem do milénio, quando a d’Orfeu deu início ao seu processo de profissionalização, a “primeira cobaia autodeterminada” foi Luís. O jovem deixou um emprego enquanto professor de música no ensino público para se dedicar a tempo inteiro à associação.

Durante largos anos, assumiu o cargo de coordenador geral que sempre o obrigou a manter “um olho no palco e outro no gabinete”, mas à medida que os anos iam passando, cada vez mais o trabalho técnico e burocrático o consumia e desgastava.

Luís é um otimista, mas “vinte e cinco anos nas costas representam muita luta”, assume, imprimindo ao discurso uma nova carga de realismo e autoconsciência.

Não raras vezes, terá dado por si de viola no colo, a pensar nos e-mails a que tinha de responder com maior urgência, ou a meio de mais uma meticulosa candidatura a um financiamento, e com o ensaio da hora seguinte a ocupar-lhe a mente.

Precisava de passar o testemunho, deixar a vertente operacional e entregar-se exclusivamente à componente criativa. Está convicto que “a sobrevivência da d’Orfeu só se fará com crescimento e isso depende de o criativo ser também profissional”.

Aquele título em forma de questão não é inocente. Na ótica do, agora, diretor criativo da d’Orfeu, o 25.º aniversário que agora se assinala, deve servir para avaliar o presente e olhar o futuro. Se, por um lado, traz a certeza de um percurso que a todos orgulha e a boa memória de um património de afetos que vai servindo de combustível àqueles que, como Luís, há tantos anos se entregam ao projeto, é também um marco que vem acompanhado de muitas dúvidas quanto ao futuro.

“Terá Águeda suficiente vício e necessidade da d’Orfeu? Se esta oferta que a d’Orfeu garante deixar de existir, sentir-se-á falta?” – são as questões que dão mote à reflexão.

Por volta dos 25 anos, muitos jovens-adultos atravessam uma crise marcada pelas frustrações e inseguranças de quem se preparou o melhor que conseguiu para a vida adulta, mas, mesmo assim, sente que ainda tem tudo para provar; marcada pela angústia de quem se vai apercebendo que os seus sonhos de infância estão a anos-luz da realidade e as expectativas que havia acalentado são defraudadas dia após dia.

Parece que com as associações – que, à sua maneira, também elas são seres vivos e humanos – o cenário não é muito diferente.

Cada vez mais as pessoas assumem que se a d’Orfeu apresenta propostas culturais de qualidade e interesse, não faz mais do que a sua obrigação. Afinal, foiesse o registo a que sempre habituou a comunidade. Mas no dia-a-dia da associação e daqueles que a ela se dedicam, esta pressão social pode facilmente gerar episódios de ansiedade e desalento.

Os adversários mais difíceis de combater são o tempo, sempre tão prepotente e acelerado, e os tempos, aqueles que vivemos e aos quais, de certa forma, estamos condenados.

Por um lado, “tudo é muito mais apelativo na novidade” e, à medida que vai amadurecendo, “a d’Orfeu já não tem a mesma capacidade para se fazer apelativa como há 25 anos”, reconhece Luís.

Por outro, há que considerar “a estonteante velocidade de consumo do mundo de hoje que nos esmaga em muitos aspetos”. Atualmente, os estímulos e solicitações são tantos e de tantas proveniências, que “a mobilização da sociedade para assistir a um espetáculo é muito mais difícil”.

25 anos celebrados em recolhimento

Para uma associação, ter de celebrar o marco dos 25 anos num contexto de pandemia e dever de recolhimento, poderia ser motivo suficiente para uma crise de desgosto e frustração. Mas a d’Orfeu tem preferido encarar a atual conjuntura como um desafio à sua resiliência, criatividade e capacidade de improviso.

Logo em abril, a crise sanitária fez cair por terra “a mais decisiva e inovadora iniciativa prevista para este ano”, revela Luís. A d’Orfeu preparava-se para acolher programadores culturais de 15 países, que vinham a Águeda assistir a showcases de grupos portugueses, numa vertente de “mostra internacional de música portuguesa”, quando o país e o mundo entraram em confinamento.

Em poucos dias, a associação também não teve outro remédio senão cancelar o Festim – festival intermunicipal de músicas do mundo. E o festival “i”, vocacionado para o público infantil e para as famílias, haveria de ser totalmente reinventado, assumindo o formato de um concerto drive-in.

O clima de constante incerteza que se tem sentido ao longo deste ano mantém qualquer programador cultural de coração nas mãos. Ainda assim, há pequenas conquistas que merecem destaque:

Para a 24.ª edição do circuito OuTonalidades, por exemplo, a d’Orfeu conseguiu agendar mais de duas dezenas de pequenos concertos, entre os quais, uma recente apresentação do duo de bateria e acordeão dois,pois, em Valência, Espanha, ou o concerto de mema. em Praga, na Chéquia.

Também “O Gesto Orelhudo” – o festival performativo de música, teatro e humor –, pôde realizar-se, de 7 a 11 de outubro, no Centro de Artes de Águeda. Cinco dias de festival com “cinco meias-salas cheias” (assim obrigavam as normas de distanciamento) que constituíram, no entender de Luís, “um êxito para a resistência da cultura” e “um momento marcante para a oferta cultural na região em ano pandémico”.

O sucesso d’O Gesto Orelhudo deixou a família d’Orfeu de peito cheio e ânimo renovado e a associação começou a antecipar uma grande gala para encerrar o ano com a celebração do 25.º aniversário da sua fundação.

No entanto, em poucos dias, a situação voltou a agravar-se, o número de casos de infeção por Covid-19 aumentou e boa parte do país – Águeda incluída – viu-se sujeita a novas medidas de recolhimento que tentam alimentar a esperança de um natal em família.

A gala teve de ser cancelada, mas nem assim a d’Orfeu deixa de assinalar as bodas de prata. A festa passou para as redes sociais:no dia 30 de novembro, transmitiram-se dois concertos do circuito OuTonalidades; os dias 1, 2 e 3 de dezembro são dedicados à partilha de mensagens de artistas, parceiros, associados, alunos e amigos; e, para sexta-feira, dia 4, está marcada a apresentação de “d’Orfeu AC Vida Selvagem”, um vídeo narrado por Eduardo Rêgo, a incontornável voz portuguesa dos documentários de natureza. Este registo de 30 minutos conta a história da associação cultural aguedense como se de “um ser novo que apareceu num ecossistema inóspito para enriquecer a fauna cultural local” se tratasse.

Estreia às 21h30 do dia 4 de dezembro, Dia Mundial da Conservação da Vida Selvagem. Vá lá acreditar-se em coincidências...

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