Antes do despontar da pandemia, as famílias residentes na rua de Beatriz Pinto – a rua de Santa Luzia, em Mataduços, Aveiro – mantinham a tradição de realizar uma pequena festa em conjunto, todos os anos, nas primeiras semanas do outono. Uma vez por ano, saíam à rua, partilhavam uma refeição e celebravam a boa vizinhança num momento de convívio e lazer. Terá sido num destes encontros comunitários, há vários anos – Beatriz não deveria ter mais de 7 anos –, que João Moita, vizinho da família e professor de música, desafiou a pequena Beatriz a experimentar tocar guitarra. Ao fim de algumas aulas, recorda a jovem, “o professor disse que eu tinha jeito” e que “não podia perder aquela oportunidade”. Parece que, já na altura, se notava em Beatriz a postura e atitude certas, a força de vontade necessária e uma espécie de predisposição natural para o dedilhar das cordas, características que terão levado o mentor a incentivá-la a continuar a aprender. Durante dois anos, Beatriz teve aulas particulares com João Moita. O professor predispôs-se a acompanhar a sua educação musical, ajudando-a a dar os primeiros passos na guitarra e a adquirir as bases necessárias para o seu ingresso no Conservatório. Atualmente com 17 anos, Beatriz frequenta o 8.º grau de estudos em guitarra clássica no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, em Aveiro, e continua sob orientação de João Moita.
É curioso recordar os primeiros anos de Beatriz com a guitarra no colo. Aos poucos, a menina que, até aquela altura, gostava de cantar “as canções dos desenhos animados e coisas que apanhava da rádio”, começava a alargar o seu repertório e, sem sair de casa, a dar os seus primeiros recitais. Na sua memória permanece a imagem dos momentos em que pedia à mãe para se deitar na cama para tocar para a irmã – Francisca – ainda antes de esta nascer, embalando-a com os primeiros acordes e trinados que aprendera. “Gostava muito de tocar para ela e ela, ainda hoje, gosta de me ouvir”, lembra a jovem, em conversa com a Aveiro Mag. Pode dizer-se que estas sessões intimistas que oferecia à irmã quando esta ainda estava no útero materno foram os primeiros concertos de Beatriz. No entanto, a jovem recorda igualmente a primeira vez que se apresentou em público. Foi uma audição recatada, em casa de João Moita, e para um pequeno auditório do qual faziam parte os seus pais, mas nem por isso a responsabilidade diminuiu. Afinal, expondo-se à apreciação de outros, Beatriz estava, pela primeira vez, a pôr-se à prova, disposta a colher os frutos do seu trabalho, quer estes viessem em forma de crítica ou elogio. Um exercício de superação e humildade que, daí em diante, viria a repetir vezes sem conta, não só nas inúmeras vezes que se apresentou em palco, mas também com a participação em diversos concursos nacionais e internacionais.
No último ano e meio, motivados pelas restrições impostas pela pandemia, muitos concursos de guitarra clássica têm decorrido à distância, através do envio de participações gravadas, e Beatriz, que já vinha ganhando o hábito de participar em competições internas, tem aproveitado para participar em várias mostras internacionais. Uma coisa é certa: seja em Portugal ou no estrangeiro, o pódio raramente lhe escapa, sendo o lugar cimeiro aquele que mais vezes ocupa. Do seu invejável palmarés, distingue-se, por exemplo, o 1.º prémio no III Internacional Classical Guitar Online Competition “Concert Day”, realizado na Rússia, e ainda o Grande Prémio dessa competição, atribuído ao participante com a melhor pontuação entre todas as nomeações e categorias etárias. “Participei a partir de casa e acabei por vencer. Recebi um prémio monetário e uma masterclass com um dos jurados”, conta a jovem guitarrista.
Apesar de, em certa medida, compreender os argumentos de quem desvaloriza estes concursos e defende que a arte não se compara, não se discute e não se avalia, Beatriz entende as competições como plataformas que potenciam a sua evolução enquanto guitarrista. “Eu não vou aos concursos só para ganhar. São momentos de muita aprendizagem, para evoluir e para nos pormos à prova. No ano todo, são mesmo os momentos em que mais consigo evoluir. estamos focados naquele objetivo e trabalhamos afincadamente para ele”. “Em tempo de concursos, chego a tocar mais de seis horas por dia”, esclarece Beatriz, acrescentando que, nas competições que decorrem à distância, por terem a possibilidade de ver e rever atentamente as participações, “alguns júris fazem questão de enviar um relatório com os aspetos que mais gostaram e aqueles que, na opinião deles, devemos melhorar”. Esse é, no entender da jovem aveirense, uma das vantagens de participar nestas competições online. Se, por um lado, “perde-se a envolvência de estar no local, em contacto com os restantes participantes”, por outro, “permite ter este feedback que, de outra forma, seria complicado obter”.
Ainda assim, Beatriz faz questão de destacar a sua participação presencial no Festival Internacional de Guitarra José Tomás - Villa de Petrer, perto de Alicante, no sul de Espanha. “Foi um concurso que eu andava a preparar literalmente, há um ano, a estudar todos os dias para poder chegar lá e conseguir o resultado que queria. Já em 2020, tinha vencido o 1.º prémio do concurso online desse festival e, na altura, um dos prémios foi a participação na edição presencial deste ano”. Neste que, segundo a própria, foi o concurso que mais a marcou, Beatriz acabou por arrecadar um justo e honroso segundo lugar. “Concorri com um rapaz que está a um nível incrível, mas o segundo lugar permite-me voltar lá para o ano ”. “Quero o primeiro lugar”, confessa, notando não só o “grande estatuto na Europa” de que goza este certame, mas sublinhando também o facto de um primeiro lugar lhe dar a oportunidade de fazer vários concertos em Espanha. “Uma chance a não perder”, reitera.
Beatriz já teve oportunidade pisar vários palcos no município e na região de Aveiro, mas também no resto do país, e em Bremen, no Norte da Alemanha. O concerto, promovido pela comunidade portuguesa naquela região, foi, para a jovem, “uma experiência muito boa”, já que “foi a primeira vez que pude mostrar o que gosto de fazer e dar-me a conhecer fora do país”.
Esforçando-se por apresentar um repertório diversificado, que vai do barroco até composições mais contemporâneas, passando, obrigatoriamente, pelos períodos clássico e romântico, Beatriz tem em Mario Castelnuovo-Tedesco, Napoleon Coste, Francisco Tárrega ou Heitor Villa-Lobos alguns dos seus compositores de eleição.
Aos 17 anos, frequenta a Escola Secundária Dr. Mário Sacramento, em Aveiro, em regime de ensino articulado com o Conservatório de Música. Apesar de, neste regime, não ter algumas das disciplinas do currículo habitual, desengane-se quem pense que a jovem tem a vida facilitada. Na disciplina dedicada ao instrumento, por exemplo, “não dá para se estudar só para os testes”, explica Beatriz. “Há todo um trabalho extra. Envolve um estudo diário com várias horas de prática e treino”.
Beatriz tem aulas de canto, aprendeu a tocar piano e até gostava de experimentar o violoncelo, mas é à guitarra que entrega, “no mínimo, três horas por dia”. Dependendo do seu horário curricular, toca entre três a cinco horas diárias. E, garante, nunca se cansa. “Antigamente, fartava-me rapidamente”, admite Beatriz, referindo que, há dois ou três anos a esta parte, não era uma guitarrista muito disciplinada. “Gostava muito de tocar, mas não treinava muito. Fazia-o, sobretudo, por diversão e só quando me apetecia”. Porém, quando assumiu que o seu futuro passaria pela música, sobrepuseram-se a vontade de evoluir e a ânsia de se querer superar. “Agora, , sempre que tenho tempo. Se não estiver a tocar guitarra sinto-me vazia. Tenho de estar sempre a tocar. A guitarra tornou-se num vício”.
Neste vaivém de aulas, concertos e concursos, tempo livre é coisa que não lhe sobra. Tanto que, depois de cerca de uma década a jogar basquetebol – a jovem aveirense começou no Clube do Povo de Esgueira, passou pelo Sport Clube da Beira-Mar e, mais recentemente, representou o Clube dos Galitos –, Beatriz acabou por abandonar os pavilhões para poder dedicar ainda mais tempo à música. “Desde que comecei o Secundário ficou mais difícil conciliar a música e o basquetebol. Tive pena , mas foi uma opção que tive de tomar”, reconhece. Como não podia deixar de ser, o papel da família tem sido essencial. “São as pessoas que mais gostam de me ouvir, que mais me apoiam e incentivam a ter experiências novas. O meu pai está sempre pronto a acompanhar-me para Espanha, para a Alemanha... Se ele pudesse, levava-me para todo o lado!”.
A decisão está tomada: Beatriz quer fazer da música – e, especialmente, da guitarra – a sua vida. Prestes a terminar o ensino secundário e o último grau no Conservatório, a jovem guitarrista está já a aprender alemão, uma vez que o seu objetivo passa por ingressar na Universidade Robert Schumann, em Dusseldórfia, na Alemanha. “Quem quer levar a música a sério, quem quer ter oportunidades de futuro, não fica em Portugal”, afirma Beatriz. “Para aprender, sim, Portugal é ótimo porque é bastante exigente no ensino da música”. Já no que toca a apostar na música como profissão, não é bem assim. “Não é segredo para ninguém: em Portugal, a cultura é pouco valorizada e não existem os recursos necessários para que os profissionais possam viver da música. No âmbito da música clássica, então, é quase impossível, na minha opinião”, lamenta a jovem que acredita que “se a música clássica se desse mais a conhecer, talvez o pensamento das pessoas mudasse. Há muito talento a fugir de Portugal porque cá, não dá”.
De acordo com Beatriz, por norma, quando um músico quer ir estudar para o estrangeiro, escolhe o local onde lecione o professor que mais se adequa às suas pretensões. A guitarrista ainda está indecisa entre o mestre cubano Joaquín Clerch e o espanhol Ricardo Gallén – este, antigo aluno de Joaquín e antigo orientador de mestrado de João Moita, professor de Beatriz –, mas acabou por optar pela Alemanha por ter lá família e, assim, “ter outro apoio”.
Aveirense de gema, Beatriz não hesita em considerar Aveiro como “uma das cidades mais bonitas do país”. Realça a ligação da cidade com a água, o facto de tudo estar à distância de um percurso a pé e a tranquilidade característica da zona verde junto ao Conservatório. “Gosto de poder ir para o parque , estender uma toalha e passar um bom bocado a tocar”. Antecipa-se, assim, uma experiência bem diferente quando se mudar para Dusseldórfia, cidade industrial e centro financeiro da Alemanha, uma urbe vibrante e apressada no coração da Europa, com uma densidade populacional quase sete vezes superior à de Aveiro.Dimensões que não assustam a jovem guitarrista, convicta que, “com trabalho, tudo se alcança”.