Foi numa visita ao Laboratório das Artes do Teatro da Vista Alegre, em Ílhavo, onde funciona o “Bairro”, o novo pólo cultural do Programa de Apoio à Produção Local do 23 Milhas, que a Aveiro Mag encontrou o músico Bruno Estima. Aos 40 anos, Bruno é professor de percussão no Conservatório de Música da Bairrada, trabalha com o serviço educativo da Casa da Música do Porto e com a Tokyo Bunka Kaikan, uma sala de espetáculos na capital nipónica, e é formador na Business School da Universidade Católica do Porto.
É igualmente o mentor e diretor artístico de CRASSH, um projeto irreverente e inventivo, que combina a percussão, o movimento e a comédia visual. O projeto CRASSH, que nasceu como proposta educativa para os alunos da Classe de Conjunto de Percussão do Conservatório de Música da Bairrada e, inicialmente, era inspirado nas dinâmicas dos britânicos Stomp, rapidamente, afirmou uma identidade e imagem muito próprias, ganhando a notoriedade, dimensão e maturidade que permitiram que deixasse a sala de aula e se tornasse no grupo de trabalho profissional e independente que é hoje em dia.
Desde 2011, Bruno Estima está também à frente da associação cultural WeTumTum que, além de ter vindo “dar suporte legal à atividade de CRASSH”, tem servido de plataforma para o desenvolvimento de outros projetos, ideias e criações artísticas, sempre vocacionadas para a infância e para as famílias, com um enfoque especial na educação musical e artística dos mais novos. Exemplo disso, aliás, será a primeira edição do Festival Papagaio, prevista para os dias 2 e 3 de abril de 2022, que tomará conta daquele “espaço incrível” que é o largo da fábrica, o antigo bairro operário e o Teatro da Vista Alegre. A designação do evento, explica Bruno, serve de homenagem à zona que acolhe o evento – a Vista Alegre – uma terra “sempre de janela aberta” às aragens que fazem cantar as centenárias belas-sombras, às brisas salgadas que chegam dos canais da Ria ou até a ventanias de maior revolta que, por vezes, gostam de dar o ar da sua graça.
No ano passado, também no âmbito da WeTumTum, Bruno foi selecionado para integrar o projeto europeu JUMP – European Music Market Accelerator – e criar uma agência de lógica corporativa, especializada em trabalhar com criadores e conteúdos artísticos para as crianças e as famílias. O projeto #WeTum4Kids – assim se chama – vai querer representar e promover o trabalho de artistas com conteúdos para estes públicos, ajudando-os a “sair das suas bolhas” que, tantas vezes, limitam o alcance dos seus projetos, proporcionar a programadores por toda a Europa o acesso a uma carteira de conteúdos para a infância e as famílias que sejam interessantes, diversificados e de qualidade e, por fim, ajudar a desmistificar o estigma que ainda se verifica no que concerne à criação artística para estes públicos. “Há quem considere que construir um espetáculo para crianças é um trabalho menor. Eu acredito que é exatamente o contrário”, reitera Bruno. “É nestas idades que o conceito do belo se desenvolve e educa. Além disso, os miúdos são o público de amanhã. Acreditamos que deve ser proporcionado a todas as crianças a oportunidade de experienciar a arte nas suas várias formas de estilos, conceitos e estéticas, para que no futuro possam tomar as suas decisões com base num conhecimento o mais alargado possível”.
Apesar desta rotina profissional tão ampla no território e nas comunidades que toca, tão intensa no ritmo de trabalho a que obriga e tão preenchida no tempo que lhe ocupa, Bruno não hesita em reconhecer: Na sua vida, “não há desafio que se compare ao de ser pai de gémeos”. “É a dimensão mais desafiante da minha vida”, assegura o percussionista bairradino, residente na Vista Alegre. “Ser responsável por dois seres ao mesmo tempo duplica a responsabilidade – por si só, tão grande – que é sê-lo só de um. São dois indivíduos que me instigam diariamente a perceber se estou a fazer o que é suposto, a equilibrar as importâncias e as prioridades, já para não falar do quão exigente é do ponto de vista físico e emocional”, partilha, em conversa com a Aveiro Mag.
Bruno gosta de estar atento a todos os aspetos que marcam o seu quotidiano, valorizando cada momento, e tentando retirar de cada vivência lições que o inquietem e inspirem. E, garante o músico: “Encontro muita inspiração no erro”. A vida ensinou Bruno a encarar os enganos, infortúnios e obstáculos com que se depara como potenciais manifestos de confiança, pasmo e novidade. “Esta é uma forma de estar na vida que me foi ensinada da pior maneira possível, quando perdi a minha mãe, aos 19 anos. Naquele momento senti que tinha duas opções: ou me deixava derrotar pela tristeza, pelo vazio e sucumbia àquela força que insistia em empurrar-me para baixo, ou procurava o avesso da questão, virava essa força ao contrário e utilizava essa energia como trampolim para algo novo, algo melhor”, conta. “Acabei por aprender a olhar assim para todas as contrariedades, das mais sérias, às mais banais, e habituei-me a este exercício de procurar a criatividade e esperança que habitam em dimensões que parecem sugerir o oposto”.
Bruno Estima cresceu em Oliveira do Bairro onde, logo aos sete anos, começou a aprender música, em aulas particulares com a professora Joaquina Lee. Não pode dizer-se, no entanto, que guarde muitas memórias dos seus tempos de infância e adolescência. Aos poucos, a prematura perda da mãe encarregar-se-ia de fazê-lo esquecer-se de muitos desses episódios já que “recordá-los, na ausência dela, era muito doloroso”. “A minha mãe era professora e muitas das escolhas que vieram a tornar-se determinantes para o meu percurso , foram feitas por ela. Acredito que ela tenha achado por bem complementar a minha formação escolar com a vertente musical... Mas há tantas perguntas que ficaram por fazer”, lamenta Bruno.
Certo é que, em 1991, Bruno ingressa no Conservatório de Música de Aveiro, onde viria a concluir o 4.º grau em piano. Desse período, lembra principalmente um “repertório muito em torno do clássico”. “As sinfonias de Mozart e Beethoven preencheram muito daquilo que foi o meu primeiro contacto com a música o que, por um lado, foi positivo, porque são composições belíssimas, mas, por outro, foi um pouco castrador porque me alienou até bastante tarde de outro tipo de conhecimento artístico”.
Mais tarde, quando chega a altura de ingressar no ensino secundário, segue para a Escola Profissional de Música de Espinho. Bruno gostava de música e aliciava-o a possibilidade de trilhar um caminho mais prático do que aquele a que o ensino regular, mais teórico, o obrigaria. Em Espinho, no entanto, vê-se obrigado a abandonar o piano e prosseguir estudos na área da percussão. “Honestamente, nem sei porque é que tinha escolhido piano ou, sequer, se cheguei a fazer essa escolha conscientemente. É provável que tenha sido pela mesma razão que tantos miúdos continuam a escolher o piano: é um instrumento muito versátil e, dentro do clássico, o mais mediático e requisitado”. Ao mudar-se para Espinho, todavia, a nova escola não tinha hipótese de lhe garantir a continuidade naquele instrumento e a alternativa, à época, passou pela percussão. “Foi um acaso”, reconhece Bruno, “mas um acaso muito feliz”. “Ainda bem que vim parar à percussão”.
Finalmente, aquando da sua licenciatura em ensino de Música, na Universidade de Aveiro, há uma experiência que, de tão marcante que foi para Bruno, não há forma de não referir. “Não tendo sido uma disciplina , foi a disciplina da minha vida, sem dúvida. Foi ali que eu dei os passos para aquilo que sou e que faço hoje”, admite. Bruno refere-se a Bach2Cage, um projeto multidisciplinar que juntava a comunidade educativa do Departamento de Comunicação e Arte da academia aveirense –músicos, designers e artistas digitais – e que se materializava num espetáculo experimental e abrangente, que celebrava a intemporalidade da música com uma viagem desde o barroco de Johann Sebastian Bach às sonoridades mais contemporâneas de John Cage, cruzando a música com as artes performativas e os conteúdos multimédia. A direção estava a cargo de Paulo Maria Rodrigues a quem ainda hoje Bruno reconhece “uma capacidade incrível de gestão de pessoas e de extrair delas, do ponto de vista coletivo e individual, o melhor que têm. Comparo-o ao melhor espremedor de laranjas do mundo, o único que tira todo o sumo que uma laranja tem para dar e sem o qual, qualquer laranja é descartada ainda com muito sumo disponível”, elogia Bruno. “Além disso, claro, é um pensador que está sempre à frente do seu tempo”, acrescenta.