A 45.ª edição do FIMUV apresenta esta sexta-feira à noite ao auditório do CiRAC, que é a entidade que organiza o evento, um concerto pelos Galandum Galundaina, que estarão em palco com mais de 20 instrumentos tradicionais da Terra de Miranda e cantam em Mirandês, que, sendo a segunda língua oficial portuguesa, tem origens asturo-leonesas e é específica dos concelhos transmontanos de Miranda do Douro e Vimioso. O espetáculo vai combinar sonoridades tradicionais do cancioneiro local com arranjos musicais contemporâneos, apresentando temas dos álbuns “Senhor Galandum” e “Quatrada” num registo apelativo e vibrante que não é dissociável do carisma expresso em canções de títulos tão sugestivos como “Fraile Cornudo”, “Nabos” e “Coquelhada Marralheira”.
João Pratas é um dos elementos do grupo, toca saltério e flauta de osso, entre outros instrumentos, e defende que esta folk transmontana tem um lugar próprio nos eventos de música erudita. “Poucos serão os músicos que não têm interesse em cruzar os seus ambientes sonoros com outros timbres e formas musicais”, argumenta, a pensar na grande percentagem de profissionais e estudantes de música que compõe a plateia típica do festival. “Essa interseção traz à música um caráter universal, permitindo-lhe ser a única linguagem verdadeiramente global”.
A divulgação do cancioneiro mirandês no FIMUV constitui, aliás, um exemplo de quanto a preservação das raízes culturais portuguesas beneficia com esse tipo de certame, cuja influência na disseminação de património imaterial chega a ultrapassa a exercida pelas estruturas do Estado. “Falando sobretudo da Terra de Miranda, enquanto região que faz parte do imenso interior do país, é necessário olhar para o território de uma forma mais harmoniosa, estimulando o desenvolvimento, a descentralização e a democratização do acesso à cultura”, diz Paulo Meirinhos, especialista no realejo e no pandeiro mirandês. “São as desigualdades causadas pela enorme assimetria entre litoral e interior, numa visão centralista que teima em persistir, que têm acelerado o processo de desertificação humana da Terra de Miranda e de outras regiões periféricas à capital”.
Entre instrumentos como a caixa de guerra e o cântaro, Alexandre Meirinhos alerta que essas desigualdades poderão acentuar-se ainda mais na conjuntura atual. “Fenómenos como a guerra e a inflação trazem incerteza e, invariavelmente, pioram as condições de vida”, afirma. “Com o devido receio e apreensão por estas circunstâncias, esperamos que se possa rapidamente estabelecer um clima de paz e de prosperidade, assente no respeito mútuo e na diversidade cultural – que é maior riqueza da vida humana”.
Musicalidade da “gaita mirandesa” suportada por investigação
Preservada desde períodos anteriores à constituição de Portugal muito devido ao isolamento geográfico da Terra de Miranda, que assim facilitou ao longo dos séculos a transmissão de conhecimento e saberes entre sucessivas gerações da comunidade local, a cultura mirandesa tem na gaita-de-foles um dos seus maiores símbolos. Paulo Preto é um dos elementos da banda que executa esse instrumento, juntamente com a doçaina e a sanfona, entre outros, e revela que o mesmo foi sujeito a um projeto de investigação que contou com a participação dos Galandum Galundaina e de outros especialistas portugueses e espanhóis ligados ao estudo da música. Esse trabalho “conduziu à padronização da gaita de fuolhes, permitindo a sua prática, de forma coletiva, e generalizando o seu ensino”, pelo que, nos últimos anos, o grupo tem assistido “com grande satisfação ao crescente número de gaiteiros e ao desenvolvimento do próprio instrumento, não só ao nível da excelência de interpretação, mas também no que se refere à sua diversificação e inclusão em diferentes ensembles”.
O profundo conhecimento que o grupo detém sobre o património musical mirandês expressa-se no que os seus quatro músicos definem como “uma narrativa ritmada, consistente, enérgica e progressiva, suportada em instrumentos tradicionais e na criação ou recriação de temas do cancioneiro tradicional e do saber popular dos mais antigos, mas também adaptada à contemporaneidade” exigida por públicos de todo o mundo.
A divulgação do cancioneiro mirandês no FIMUV constitui, aliás, um exemplo de quanto a preservação das raízes culturais portuguesas beneficia com esse tipo de certame.
É por todo esse empenho que na sexta-feira o palco do FIMUV deixará patente o sentido de missão de um projeto artístico com fins pedagógicos e sociais urgentes. “Uma das leis universais da natureza é que os seres vivos morrem”, começa por explicar Paulo Preto. “A Terra de Miranda é uma região muito rica em tradições e saberes, que também se traduzem num vasto repertório musical onde cabem romances, canções de amor, composições de influência religiosa, lhaços e outras formas musicais com que se animavam as festas, os serões, os momentos solenes e também os de trabalho, maioritariamente ligados ao mundo rural, à agricultura e ao tempo natural trazido pelas quatro estações. Essa sociedade, contudo, já não existe na atualidade”, complementam Paulo e Alexandre Meirinhos. Preservar essa memória e identidade é, então, prioritário.
“A emigração dos mais novos e o rápido envelhecimento dos que viveram nessa época e guardam esses saberes é uma das maiores dificuldades que se colocam à preservação deste património”, remata João Pratas. “Mas também é uma das maiores motivações do nosso trabalho, porque ver gente que canta e toca os temas que temos vindo a apresentar ao público é algo que nos enche de orgulho”.