“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...”
“O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro
Criado em Fermelã, no concelho de Estarreja, o astrónomo e divulgador científico José Augusto Matos é, segundo o próprio, um “filho da aldeia”. À conversa com a Aveiro Mag, recorda uma infância marcada pelas “noites de verão a observar o céu” e garante nunca ter sido daquelas crianças que sonha vir a tornar-se astronauta. No seu caso, o fascínio pelo Universo, pelas estrelas, planetas e fenómenos celestes vem dos livros. “Vivia na aldeia, mas tinha uma grande vantagem relativamente aos outros miúdos: tinha livros em casa”. Desde novo que o pai de José, um empregado bancário que trabalhava na cidade, nutria grande interesse pela leitura e tinha gosto em ter vários livros em casa. “Alguns deles falavam da Lua, do Sistema Solar... Foi através desses livros que despertei para o mundo da astronomia”, conta José.
Outra das vantagens, refere, era ter televisão. No ano em que o José Augusto Matos nasceu, o mundo ainda tinha bem presente a transmissão televisiva da missão Apolo 11 e o eterno “pequeno passo” que, por força da sua condição pioneira, se transformara num “salto de gigante” – em julho do ano anterior, Neil Armstrong e Buzz Aldrin tinham deixado as suas pegadas gravadas no solo lunar e os seus nomes, para sempre, nos livros de História. Nas décadas seguintes - 1970 e 1980 -, a programação televisiva seria invadida por séries de ficção científica – como a britânica Espaço:1999 ou as norte-americanas O Caminho das Estrelas e Galáctica –, assim como pelo incontornável Carl Sagan, com a série documental Cosmos. Uma Viagem Pessoal. “Lembro-me perfeitamente da estreia e de acompanhar os episódios . Foi um grande acontecimento naquela época, nunca tínhamos tido nada assim”, recorda José. Tudo isto, claro, sem esquecer a primeira trilogia da saga A Guerra das Estrelas que também chegou às salas de cinema por aquela altura. A cultura pop fervilhava com a perspetiva de naves espaciais, planetas distantes, seres alienígenas e conflitos intergalácticos e boa parte dos adolescentes e jovens da época vibrava com este imaginário.
No que toca a José, todavia, quando tudo isto apareceu, já a sua paixão pela astronomia estava mais do que consolidada. Além disso, é bom notar que, em muitos aspetos e para muita gente, aquele ainda era “um tempo obscuro”. “Não tenho grande memória do 25 de abril, mas lembro-me perfeitamente de como era a vida na aldeia naquela época. Num meio pequeno como o de Fermelã, as coisas não mudaram imediatamente no dia seguinte à revolução. O acesso à informação continuava a ser escasso”. Quem desejasse aprofundar o seu conhecimento em astronomia tinha em mãos uma missão complicada. “Não havia revistas com informação atual, quase não havia lojas de astronomia e as que havia só vendiam uma ou duas marcas, tudo a preços proibitivos... Sabes como é que eu, com os meus 14 ou 15 anos, sabia quais os astros que estavam visíveis no céu a cada momento? Lia O Seringador ”, partilha José. “Só mais tarde, já eu andava no secundário, é que começam a aparecer revistas da especialidade e, já nos anos de 1990, os primeiros programas de computador relacionados com a observação do céu”, lembra. Aos 19 anos, José compra o seu primeiro telescópio - “Aquela luneta custou-me 60 contos ! Hoje, com o mesmo montante e mesmo considerando a inflação, compro um equipamento bem melhor”, assegura o astrónomo – e, no mesmo ano, passa a integrar a recém-criada secção de Astronomia da Associação Académica de Coimbra. “Conheci, finalmente, outras pessoas que, tal como eu, gostavam de astronomia. Até essa altura, eu tinha sido sempre o único da minha aldeia, o único da minha escola a interessar-me por estas matérias. Nenhum colega meu ligava nada a isto”. “Conhecer outras pessoas que também se interessavam por esta matéria foi muito importante para mim”, reconhece.
Paixão que virou profissão
Desde o início dos anos de 1990 que José sustinha a expectativa de poder vir a fazer da astronomia a sua vida. No entanto, numa altura em que aquela matéria nem sequer fazia parte dos currículos escolares, não havia forma de justificar a realização de sessões de divulgação com estudantes. O “ponto de viragem fulcral”, explica o astrónomo, dá-se no ano letivo de 1994-95, quando a astronomia passa, finalmente, a integrar os programas das disciplinas de Física e Química e de Ciências Naturais. “Foi uma mudança abismal”, congratula-se. “Passou a gerar-se todo um conjunto de oportunidades que, anteriormente, não era possível”. No ano seguinte, José Mariano Gago assume o ministério da ciência e dá início a uma nova revolução. “Criou o programa Ciência Viva, que ainda hoje existe, e canalizou um conjunto de apoios e incentivos à divulgação científica. É nessa altura, por exemplo, que a Fisua adquire o planetário portátil para desenvolver ações nas escolas e vários telescópios para as atividades de verão”, nota José.
Vinte e oito anos depois, as escolas continuam a ser “o grande cliente” de José Augusto Matos. “Gosto, principalmente, de trabalhar com as crianças do 1.º ciclo. São curiosos, interessados e fazem milhentas perguntas”. As mais comuns são “se eu já fui ao espaço” e “se eu sou astronauta”. “São ingénuos, mas têm muita vontade de aprender. Ainda há pouco tempo, sobre Plutão, perguntaram ‘Então, mas vive lá alguém?’ e eu disse-lhes, na brincadeira, ‘Vivo lá eu, tenho lá uma casa, logo à tarde já volto para lá’”, relata, enquanto sorri. “Dá-me grande satisfação trabalhar com eles, é uma alegria diária, garante sempre momentos bem passados. Já sei que me vou divertir com eles e isso dá-me uma grande motivação”, conclui.
Quando soube que a universidade de Aveiro ia abrir uma nova licenciatura em engenharia aeroespacial, José Augusto Matos recebeu a notícia com um misto de “entusiasmo” e “preocupação”. “Até há pouco tempo, só tínhamos um curso desses, cá em Portugal – no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Agora temos em Aveiro e vai abrir outro no Minho. A minha questão é: há trabalho nesta área para tanta gente?”, duvida José. “Só espero que os jovens não saiam desiludidos”, confessa. O que diria, então, José a um jovem que esteja a pensar seguir estudos nesta área? “Ao longo do tempo tenho encontrado muita gente interessada e que me confessa que gostava de poder seguir algo relacionado com esta área. Na minha opinião, há que ter em linha de conta, antes de mais, que a astronomia exige uma boa preparação em Matemática e em Física. Por vezes, há jovens entusiastas, mas que não está tão bem preparado nessas matérias. Se estiverem, a astronomia é uma possibilidade, mas nunca esquecendo que as saídas em Portugal são muito escassas”.
Dicas, truques e segredos para divulgar astronomia
O problema não é novo, mas nem por isso deixa se ser preocupante: a falta de cultura científica alimenta medos e conspirações. É “um fenómeno terrível”, confirma José. “Supostamente, com a facilidade de acesso à informação que, atualmente, temos, devíamos estar escudados contra esse tipo de males, mas não só não estamos como – arrisco-me a dizer – estamos até mais expostos a eles”, alerta. “O que eu, que vivi na era pré-internet e vivo na sociedade atual, constato é que a desinformação circula mais depressa agora. As pessoas deixam intoxicar-se por informações falsas”. Esta falta de cultura científica e, nalguns casos, uma certa propensão para acreditar em teses delirantes, pode, por vezes, ser um entrave a quem, como José, tem como profissão divulgar conhecimento científico. No mundo da astronomia, avança José, há quem insista em “combater a crença na pseudociência da astrologia”. “É uma batalha infrutífera”, verifica. “Quando estou a fazer uma sessão de observação e encontro alguma pessoa com uma crença dessa natureza – e já tenho encontrado várias ao longo dos anos – tendo a desmistificar a questão, mas tenho a certeza que as pessoas não vão mudar só porque me ouviram. Muitas vezes, a astrologia funciona como uma espécie de fé. Eu bem posso passar uma sessão de observação a fazer a mais competente e completa desmistificação dos signos, que quem acredita vai continuar a acreditar. Não é nada fácil convencer alguém de alguma coisa quando essa pessoa já está convencida do contrário”.
Quanto à complexidade dos assuntos tratados nessas aulas ou sessões de observação, José está ciente que “nem sempre é fácil” chegar ao público. Há, porém, alguns aspetos que, no seu entender, qualquer bom divulgador de ciência nunca pode descurar: “Em primeiro lugar, há que saber para que público é que estamos a falar e adequar a linguagem a esse público; depois, é boa ideia escolher um tema acessível e que seja fácil de explorar – Se me vou por a falar sobre a origem do Universo arrisco-me a que boa parte das pessoas não perceba nada do que eu estou para ali a dizer –; finalmente, é fundamental ter a preocupação de que as pessoas passem ali um bom bocado. Trata-se de uma sessão didática, mas é essencial que os participantes fiquem com a memória de um momento descontraído e divertido”.
Em busca de um céu escuro
Há cerca de 14 anos, José Augusto Silva mudou-se para Santa Joana. No entanto, apesar de residir numa “zona de campo” daquela freguesia aveirense, lamenta “não estar suficientemente longe dos grandes focos de luz da região”.
É inegável que a tecnologia LED veio revolucionar a iluminação pública no que concerne ao consumo energético e aos custos de manutenção, mas para quem, como José Augusto Matos, gosta de observar o céu noturno, aquela luz brilhante, branca e uniforme das novas luminárias é uma adversária praticamente invencível. “Há muita luz no ar”, concede, resignado. “Se queremos usufruir de um céu escuro temos de rumar a zona este da região, subir as montanhas – Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga, ou a parte serrana do concelho de Águeda”, revela o astrónomo. “Perto do centro de Aveiro será sempre difícil. Além de toda a poluição luminosa, por serem zonas marítimas, são propícias a nevoeiros e neblinas”. “O ideal é mesmo ir para o interior”, sentencia.
José Augusto Matos tem-se ficado pela observação dos “céus portugueses” – não costuma fazê-lo fora do país – e, se tivesse de escolher o mais interessante que já analisou, é provável que a escolha recaísse sobre a reservaDark Sky Alqueva, em Reguengos de Monsaraz, que se habituou a visitar todos os anos. “No verão, é possível ver a Via Láctea”, relata, assim como vários corpos celestes que, fora daquela área protegida da poluição luminosa, dificilmente seria possível distinguirem-se a olho nu. Ora, se a região do Alqueva tem vindo a tornar-se um destino turístico de eleição para quem, a partir da Terra, gosta de observar o espaço, há quem se proponha a ir mais além. Apesar dos elevados custos que acarreta, o fenómeno do turismo espacial está em franca expansão, atraindo cada vez mais adeptos. “É pena não ter dinheiro para isso, senão também ia dar uma volta”, brinca José.
Seja de olhos postos no céu noturno ou, à luz do dia, com os pés bem assentes na terra, José Augusto Matos promete continuar a percorrer o seu “caminho das estrelas”, sempre ao serviço da ciência (além de divulgador na área de astronomia, tem trabalho publicado em investigação da história militar portuguesa) e ao serviço da sua comunidade (enquanto autarca, já passou pela assembleia de freguesia de Fermelã, é deputado municipal em Estarreja há mais de 20 anos e um dos mais antigos membros da assembleia da CIRA – Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro).