Em vésperas do aniversário da Aveiro Mag a proposta passava por falar sobre jornalismo e nada melhor do que fazê-lo com alguém cuja carreira o levou a passar por jornais, rádios, televisões e, mais recentemente, por uma agência noticiosa, e que também goza desse estatuto de ser aveirense dos sete costados. Calejado em fazer perguntas, em especial as mais pertinentes, Rui Baptista acedeu ao nosso desafio, mas sem o formalismo de uma entrevista - o cenário também era mais propício ao formato conversa: ao sol, numa esplanada, com vista para o Farol da Barra. Foram quase duas horas de conversa em torno de jornalismo e não só. Rui Baptista é um fã incondicional de política, assertivo nas suas opiniões, um observador nato e, por isso mesmo, foi-lhe difícil evitar falar da atualidade política de Aveiro e Ílhavo. Só não falámos de futebol, mas, verdade seja dita, aí a culpa é da interlocutora, que gosta muito pouco de bola.
Nascido em Ílhavo, “em casa, à antiga portuguesa, de dentes cerrados”, Rui Baptista tem hoje 59 anos e há 35 que é jornalista. Ainda chegou a entrar no curso de Direito, numa altura em que ainda não sabia o que queria fazer, mas o destino conduziu-o até ao mundo da rádio. “Ainda não na perspetiva de informação ou animação. Fazia muita publicidade. Achavam que eu tinha uma boa voz, pagavam bem e eu de vez em quando ia gravar publicidade”, enquadra. Por essa altura, “através da Renascença", soube de "um curso para formar jornalistas” e decidiu arriscar. “E nunca mais voltei para trás, dediquei-me ao jornalismo”, refere. Trabalhou no Diário de Aveiro, passou pelas Rádio Regional de Aveiro e Rádio Moliceiro e deu aulas de jornalismo na Escola Secundária de Ílhavo. Em 1989, entrou para o Público, fazendo assim parte da sua fundação, mas só em 1992 se tornou “Público-dependente” - ou seja, dedicou-se por inteiro ao jornal do grupo Sonae.
Eram outros tempos, com realidades completamente diferentes das atuais. “Às vezes tenho dificuldade em explicar às pessoas o que era o jornalismo em Aveiro nessa altura. Estamos a falar de uma altura em que os jornais eram muito mais importantes do que o que são hoje. Vendiam-se jornais. O Público chegou a vender 80 a 85 mil exemplares, o JN era um porta-aviões com 120 mil , o Correio da Manhã estava em vias de ser... Havia o Expresso. Havia oportunidades de trabalho”, aponta, sem esconder que também havia o reverso da medalha. “Ainda se compravam reportagens. Ou seja, a maior parte das coisas que se faziam na altura, o jornalista não só tinha a missão de informar, mas também a missão de ajudar o jornal. Só para teres uma ideia: tivemos, em Aveiro, a situação de um jornalista de um jornal nacional que, simultaneamente, era assessor de imprensa da câmara de Aveiro”, revela. “Quando o Público apareceu em Aveiro veio pulverizar tudo o que havia porque vivia-se na casa do respeitinho e o Público veio estilhaçar o respeitinho. Respeito, tudo bem. Pelas instituições, pelas figuras e pelas regras da ética profissional. Mas ‘respeitinho’, não”, sustenta, sem esconder que esse arrojo trouxe dissabores. “Do ponto de vista pessoal, arranjei inimigos que ainda hoje andam por aí”, confessa.
Teve que responder em vários processos judiciais, escreveu peças que contribuíram para a detenção de algumas pessoas na região, esteve em cenários de conflito (Kosovo, Bósnia, Angola e Timor foram os quatro mais difíceis), mas foi em março de 2001 que viveu o momento mais traumatizante da sua carreira. “A queda da ponte de Entre-os-Rios foi o trabalho mais difícil que eu fiz na minha vida. Eu e toda a gente que lá passou. Foi muito mau. Sentia-se a dor das pessoas. Estive lá desde a primeira noite e andei a ir para lá todos os dias”, conta. “Aquelas conferências de imprensa diárias, aquela expetativa do aparecimento dos corpos, lidar com os familiares das vítimas. Tudo num sítio que parecia ter sido esquecido. Demorava-se duas horas para chegar lá a partir daqui, numa estrada toda esburacada. Um concelho que tinha já sofrido com o encerramento das minas do Pejão”, acrescenta.
Um dos últimos redutos do jornalismo
Em 2006, depois de sair do Público - onde teve a oportunidade de ser editor da Fugas, editor de Política, editor de Local, simples jornalista e chefe de delegação -, integrou a agência Lusa, onde ainda trabalha. “Tive a felicidade de trabalhar num sítio muito interessante e agora trabalho num sítio que nunca pensei gostar tanto de trabalhar. Nunca pensei gostar tanto da Lusa. A Lusa é um dos últimos redutos do jornalismo de pirâmide invertida, com as questões de referência, onde nada vai para a linha sem ter fonte cruzada. Além de ser um grande martelo de humildade. Na Lusa desapareces do domínio público”, faz questão de sublinhar.
“O jornalismo transformou-se”, reconhece. “Nalgumas coisas, para melhor – na facilidade, na rapidez”, introduz, recordando que, um dia, no Chipre, quase “rebentava” um quarto à procura de uma ficha rita para enviar um texto. “Hoje, pegas num telefone ou num computador, tens internet, envias os textos que quiseres, envias vídeos... Por outro lado, o desaparecimento da mediação, a entrada de toda a gente nas redes sociais, convencida que podem ser jornalistas cidadãos, leva a uma grande confusão entre o que é fazer jornalismo e ser um curioso que assistiu a uma coisa qualquer”, contrapõe.
Entre 2010 e 2015, Rui Baptista deixou o jornalismo para assumir a função de assessor de imprensa de Pedro Passos Coelho. Já tinha recusado convites de outros políticos, porque gostava de ser jornalista, mas a crise que Portugal vivia na altura - o país estava sob a assistência da “troika” - levou-o a aceitar. “Estávamos a caminhar para uma loucura, como se sabe. Pensei que se calhar era o meu serviço... Não ao país, porque isso é muito pomposo... mas senti que, se calhar, era a minha oportunidade para participar em alguma coisa em que acredito”, relata. Gostou muito da experiência. “Quando uma pessoa percebe os mecanismos do poder, os bastidores do poder, a maneira de lidar com as figuras, se o seu objetivo na vida é ser jornalista, isso reforça o profissional”, testemunha. Ainda assim, não esconde que essa passagem pelo mundo da política “atrapalhou muito” a sua carreira quando regressou ao jornalismo. Nunca mais fez comentários na televisão, lamenta. “Nunca me senti perseguido pelo atual poder, temos de fazer essa justiça. Mas há camaradas de trabalho que não querem fazer isso porque têm medo de que as pessoas venham a não gostar. Fazem mal, mas é com eles. Já estou em paz com isso. No início, custou-me um pouco a aceitar”, conta.
Atento à política de Aveiro e Ílhavo
O seu gosto pela política não se limita à escala nacional e internacional. Rui Baptista também vai acompanhando, com especial atenção, a atualidade política da região, em particular a dos municípios de Aveiro e Ílhavo. Em relação ao primeiro, diz que acha “uma asneira o que está a acontecer com o Ribau ao desapreciar a herança do Alberto Souto”. “Ele foi muito importante para Aveiro. Pegou na ideia do Girão de que Aveiro não podia expandir-se para o lado da Ria e tinha de expandir-se para o outro lado e não podia ficar limitada pela linha de caminho-de-ferro trazida pelo José Estêvão e levou-a mais longe. Começou a alindar a cidade: limpar os canais, abrir o cais da Fonte Nova, criar centralidades, algumas que pareciam asneira, mas que vieram a revelar-se acertadas (como as traseiras da estação ferroviária). Por isso entendo que o Alberto Souto fez muito pela cidade”, comenta. Seguiu-se um “período da Idade Média”, critica, recordando os mandatos de Élio Maia. “A cidade estagnou novamente, era dirigida como se fosse uma junta de freguesia”, frisa. Já Ribau Esteves, “em pouco tempo resolveu o problema da dívida. E com grandes contingências financeiras como as que tem esta cidade, está a fazer algumas coisas”, repara. “Coisas à maneira dele, que é obcecado em deixar a sua marca nas cidades”, contrapõe, mostrando-se bastante crítico em relação aos projetos da Avenida Lourenço Peixinho e do Rossio.
Neste que é o último mandato em que Ribau Esteves pode ser candidato em Aveiro, é tempo de começar a pensar na sua sucessão. Da parte do PS, “o homem natural para pegar nisto era capaz de ser o Alberto Souto, mas tem muitos anticorpos eleitorais e dentro do seu próprio partido. Vão optar provavelmente por uma figura como o Eduardo Feio, uma excelente pessoa, mas que não tem carisma e energia para contornar aqueles obstáculos”, analisa. Já o PSD, no seu entender, “tem dificuldade em arranjar figuras. O José Agostinho, sendo uma figura forte, seca tudo ali à volta”. Rui Baptista admite que uma das soluções pode passar por ir buscar um autarca da região que tenha feito um trabalho mais ou menos bom e que tenha aprendido as manhas, que não seja um espanto para ele quando tiver de analisar um processo, que não tenha medo de decidir”. E atira um nome para a candidatura a Aveiro: o presidente da câmara de Vagos, Silvério Regalado.
Quanto a Ílhavo, diz que “não foi uma surpresa a derrota do anterior presidente”, ainda que seja uma pessoa pela qual tem apreço pessoal. “A vida política já não se satisfaz só com boas pessoas. É preciso rasgo”, argumenta. Já sobre o presidente atual, João Campolargo, diz que lhe parece “mais apostado em relações públicas do que em fazer coisas”.
Mais importante do que tudo isto, e transversal a Aveiro e Ílhavo, é resolver o problema da gentrificação. “Eu, hoje, não consigo viver em Aveiro, na Beira-Mar. Aquilo vai sendo ocupado por estrangeiros. O mesmo vai acontecendo na Costa Nova. A única coisa que posso fazer na Costa Nova é sentar-me num bar de praia ou estender a toalha porque os preços são absolutamente absurdos. Hoje em dia, mesmo no bairro dos pescadores que é uma zona mais humilde, que cresceu depois do 25 de abril sem regras, perguntas o preço de qualquer casa e pedem-te sempre mais de 300 mil ou 400 mil euros. Não sei onde é que isto vai parar. A tendência de subida de preços foi mundial, mas está a descer em todo o lado menos aqui. Todos os dias nasce uma empresa de mediação imobiliária”, alerta. Estaremos perante um potencial candidato a uma das duas autarquias? Rui Baptista afasta, por completo, esse cenário.