O outono está de volta e as castanhas são agora assadas com o biocarvão, feito a partir de biomassa proveniente de florestas sustentáveis. Ecológicas, quentes e boas, já estão com a casca a estalar no assador da venda ambulante na Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas, ali junto às Pontes, a designação que lembra o tempo em que eram duas travessias e em que o General Humberto Delgado não tinha ainda ousado candidatar-se à Presidência da República e, ganhando o prélio eleitoral, demitir, obviamente, Salazar. A coragem de lutar pela democracia justificaria a deliberação municipal de atribuir à ponte praça o nome do militar que teve a audácia de empreender o combate político plural em época de ditadura.
Retorna, no fim de setembro, a estação da queda das folhas, que já não serão as dos magníficos choupos que viviam no tabuleiro central que separava o rumo dos veículos na avenida que ficou com o nome do Dr. Lourenço Peixinho, que a imaginou e a edificou para ligar a estação de caminhos-de-ferro ao centro da urbe (e o percurso inverso também, naturalmente). As sombras da cidade chegarão mais cedo do que nas tardes de verão, as paletas dos pintores do quotidiano terão mais tons castanhos que na estação precedente, o sol ficará mais baço a cada dia e a brisa refrescará até se quedar definitivamente fria. Os mistérios outonais regressam, escutam-se nas badaladas dos sinos na Igreja do Carmo ou no chilreio do fim de tarde no quintal de árvores frondosas que ainda não foi derrubado para o espaço ser depois vendido em camadas de cimento. Os miúdos vêm da escola da Rua Visconde da Granja como nós viemos, segurados pelas mãos dos pais, ou pelas dos avós, mais enrugadas. Transmitem, os catraios, as novidades das aprendizagens e as proezas cometidas nos intervalos das aulas, um golo marcado, seja o que for. É outono outra vez e olhamos para dentro de casa e confirma-se que no sofá está quem nos acompanha no copo de vinho que se saboreia enquanto a canção que toca no gira-discos nos fala de como se pode amar a vida nas singelas dádivas que o mundo proporciona assim que nasce o dia.
Será tempo, um pouco mais adiante, de lembrar os finados, porque somos gratos, também na medida em que, respeitando as diferentes gerações, o país será para velhos, defendendo-se as memórias, da forma que se preservam os genes que asseguram a identidade e cuja manutenção intocada significará liberdade. Haverá uma época futura em que os geneticistas quererão ou serão forçados pelos dirigentes a mudar os genes humanos para que os indivíduos se moldem com menor resistência à submissão? Será essa a perversa ventura da Genética, conseguir a ordem, a estabilidade e a resignação que os estados totalitários, as religiões ou mesmo os tiranos de província ainda não conseguiram, mas pretendem alcançar, tendo em vista o controlo absoluto do poder? Pelo mundo espalham-se tronos que imaginam comandar os destinos de terras e povos, de perpetuar um nome, heroicizá-lo, uma tontice pegada, pois quem assim ambiciona olvida que a eternidade apagará os sinais dos reinos e dos soberanos, ambos efémeros. A perpetuidade fará essa extinção pelo esquecimento, seguramente com mais facilidade com que destruirá uma montanha cuja história apenas a areia do deserto saberá narrar. Os anos, que se contam em biliões, arrastarão as vãs glórias de mandar com indiferença igual àquela com que se empurra o resto da refeição do prato para dentro do saco do caixote do lixo.
Os torturadores sabem-no. O que mata uma comunidade é inspirar-lhe o terror até que a mais inócua opinião tombe. Há que humilhar o cidadão, amesquinhá-lo com continuada tortura para fazer doer e a dor servir de exemplo para outros. Sabia-o.
Sabiam-no. Enquanto tivesse esperança, uma ambição que fosse, teria receio de a perder. Por isso, não abandonaria o complexo residencial. Sabiam-no. Havendo uma expectativa, ficaria atrelado àquele lugar, às tarefas. Era assim com ele e com os outros. Sabiam-no. Seria desnecessário colocar-lhes mais qualquer coisa no bolso, bastaria aquela moeda para que sentissem que poderiam adquirir, comprar, ter, e, assim, prosseguirem ligados aos desejos aquisitivos comuns. Sabiam-no. Fracos demais para desistirem de lutar contra a segurança, a pretensa doença precisaria de seguro, a refeição que faria diferença no ânimo diário, o teto sólido e as paredes a segurarem a temperatura tépida dentro da habitação. Sabiam-no. Os cães afeiçoam-se a qualquer poiso e a qualquer trela desde que o prato com o osso e a tijela da água surjam da mão do dono todos os dias e aliviem a fome e a sede.
Fecharam-se no sótão na esperança de nunca serem encontrados. Trancaram as portas para que ninguém os olhasse e lhes visse nos olhos a vergonha de terem estado do lado do ódio contra a população indefesa, mas insubmissa, aconchegados com os inimigos na trincheira da raiva e do espírito de vingança, da maldade, da crueldade mesmo, que antes não reconheceriam e não aceitariam. Agora que sabiam o sabor da amargura, do sangue e o aroma da punição e da morte, podiam recorrer ao álibi dos cobardes: estavam apenas a cumprir ordens ou alegavam que não se podiam prejudicar a si próprios e às suas famílias.
Neste outono a Adega do Evaristo vai fechar, um espaço que morre e dele sobra a saudade do parente que deixou a família, luz que se apaga com a facilidade do toque do dedo no interruptor doméstico que interrompe o préstimo da lâmpada.
Num dos derradeiros dias de funcionamento do estabelecimento, ele encontrou o Professor, cliente regular do restaurante, que acabara de almoçar. O docente disse-lhe: gosto do que tu escreves, às vezes tenho de ler duas vezes. Estás embriagado quando rediges essas coisas? – perguntou, quando se chegara mais perto do balcão da taberna para pagar o repasto. O inquiridor ainda tinha os lábios engordurados, que sugeriam o cuidado do guardanapo nos beiços, e, a fugir da boca, o hálito do vinho de uvas azedas que o odor do café tentava mascarar. O autor riu-se e respondeu: não, território livre da influência do álcool! Pensou o prosador: o que adianta ou retarda o facto de este ou qualquer idiota, como ele ou eu, apreciar ou depreciar o que se escreve e em que circunstância? Afinal, que sabemos nós do estatuto do texto, se fixa um ethos para o devir social, estipulando o dever ser ético, inevitavelmente pretensioso, ou se a vocação textual não se eivava com teleologia normativa alguma e as palavras ajuntavam-se apenas para adorno de uso pessoal, um colar de pedras pequenas, disformes e de cores múltiplas, frases a procurar a afeição entre elas, a gerar o que os gregos antigos consideravam o pathos, uma paixão, que aparece de forma mais ou menos inadvertida?
Estava sóbrio, sorriu, e, enquanto aguardava que o pedido do menu arribasse, anotou no livro de apontamentos: “Trazia o vestido vermelho que teria desenhado no eco da voz de Lana Del Rey e costurado com o tecido de Summertime Sadness. A luz esbranquiçada do final de verão oferecia ao olhar os tons pastel das casas, dos carros, das roupas, dos rostos. Ele apontou o revólver Magnum 44 e decidiu disparar puxando atrás o dedo indicador, premindo o gatilho da arma. A bala que saiu do cano da pistola estoirou no peito da rapariga e o sangue espichou das veias atingidas pelo projétil, espremeu a tinta rubra da roupa. Para ele, que se mantinha imperturbado, seria apenas molho de tomate a escorrer de um pedaço de carne, tratar-se-ia de uma personagem de Tarantino, das que morrem na tela sem que se questione a crueza do destino, parecendo que o fim da vida é apenas parte da comédia das coisas. Que lhe importaria que ela estivesse a desfalecer.”