Tenho em casa, por herança familiar, uma relíquia chamada Livro de Pantagruel. Esta gorda preciosidade de mil páginas, uma 17ª edição de 1955, é um legado dos meus avós. Logo a abrir lê-se “todos os exemplares são rubricados pela autora” – e a assinatura de Bertha Rosa Limpo lá está, numa magnífica mas quase indecifrável caligrafia.
Nesta maravilhosa obra não faltam marcas de manuseio abundante e da passagem do tempo. A capa, a lombada e a contracapa são atravessadas por duas tiras longitudinais de fita adesiva que garantem a solidez possível ao volume. Há folhas descoladas e páginas dobradas, rasgadas, manchadas e com vincos. Uma folha de eucalipto jaz seca na secção das massas e dezenas de recortes de jornais encontraram o seu túmulo entre as páginas do livro.
São recortes do tempo em que iogurte não se escrevia iogurte. Um artigo de Miquelina Martins tem por título “Youghourt, refrescos e sumos”. Miquelina Martins era, ao que parece, muito apreciada naquela casa. Encontro vários artigos da rubrica “Cabaz das compras” que assinava no Comércio do Porto. Num deles, numa resposta a uma leitora – “a boa Ana Maria” -, afirma num tom algo sinistro: “como os coelhos muito têm proliferado, deseja saber cozinhá-los de várias maneiras para ir dizimando as sucessivas ninhadas que estão crescendo e já lhe estão dando prejuízo pois comem de dia e de noite”. Como se não bastasse, a palavra “dizimando” aparece cunhada a negrito. E então para que a chacina da “boa Ana Maria” seja empreendida com proveito culinário, propõe à leitora que prepare Coelho à Caçador, Coelho Delícia e Coelho Grelhado, cujas receitas descreve nas linhas seguintes.
Passei longos minutos a ler o “Cabaz das compras” e podia ocupar este texto só com os fascinantes conselhos da Miquelina, cujos artigos no extinto jornal tinham a vizinhança de anúncios a bombons, cruzeiros ou portas-fronha, necrologias e editais da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho.
No entanto, o que me levou a pegar no Livro de Pantagruel foi outra coisa. Queria saber se Bertha Rosa Limpo incluíra a Barriga de Freira no rol de centenas de receitas que compilou na sua obra monumental. E encontrei-a, entre o Pudim de Natal e o Torrão de Rainha.
Bertha Rosa, Miquelina, Pudim de Natal, Barriga de Freira, coelhos? Mas isto vem a propósito de quê? Estranhamente, de um passeio a Vale da Mó. O domingo afigurava-se de chuva mas mais cedo no norte do que no sul. O que, portanto, me fez ir para sul. Como tanto gosto de fazer, esquivei-me das estradas principais e fui percorrendo a malha de ruazinhas onde, em tantos casos, quase não passa ninguém. Foi este roteiro menos convencional que desta vez me conduziu ao Convento das Ursulinas de Vale da Mó. Dirigi-me a esta aldeia de Anadia, a 40 quilómetros de Aveiro, situada nas faldas da Serra do Caramulo, para visitar as suas termas, instaladas num belo parque onde um edifício modesto e bonito com quatro colunas na frontaria é encimado pelo letreiro “Fonte”. Ao ver uma alma penada por ali num domingo de manhã bem cedo, uma funcionária solitária aborda-me e acabo de copo na mão a beber a água ferrosa que jorra com um fluxo modesto de uma única bica. Sou a única pessoa por ali, à exceção de um pastor e das suas ovelhas, cujos badalos enfeitam o silêncio do lugar.
Das termas partem dois curtos percursos pedonais até à aldeia vizinha da Junqueira (1,2 km) e até à Barragem da Gralheira (3,8 km). Sigo em direcção à Junqueira, inicialmente por um caminho de terra batida pelo meio do bosque e depois numa estrada asfaltada que me guia até à rua principal. Páro na Tasquinha do Pôr-do-Sol, uma roulotte à beira da estrada onde numa ardósia são anunciadas bifanas, moelas, orelha, rojões ou carapau. Opto por uma patanisca, que como ao som de Tina Turner.
Regresso às termas e dali parto numa deambulação por Vale da Mó. Passo pela Pensão da Montanha, com sinais de abandono, e é então que, numa zona elevada da aldeia, deparo com o Convento das Ursulinas – na verdade, com o que resta dele, porque está abandonado há longos anos. O edifício da Ordem de Santa Úrsula foi construído no início do século XVIII, por iniciativa de um grupo de senhoras devotas a conselho dos seus padres confessores, todos jesuítas. Em 1834, porém, as freiras mudaram-se para Coimbra e hoje mais não restam do que ruínas e a Capela da Nossa Senhora da Piedade, cujas imagens, também do início do século XVIII, foram moldadas e pintadas por barristas de Aveiro.
Mais tarde, já em casa, ao pesquisar sobre o convento, leio uma tese que diz que a Barriga de Freira – ou pelo menos uma das suas versões - foi criada no Convento das Ursulinas de Vale da Mó. E foi isso que me fez consultar o Livro de Pantagruel.
O antigo convento vai-se deteriorando a cada ano e ninguém parece preocupado. O Sistema de Informação para o Património Arquitectónico, uma entidade estatal, assinala que o processo relativo a este complexo religioso está “em estudo”. Acontece, porém, que esta anotação é de 2003 e por este andar mais depressa constroem o aeroporto de Lisboa do que decidem o que fazer ao convento. Que, paz à sua alma, parece condenado ao desaparecimento.
De Vale da Mó prossigo até à Barragem da Gralheira, onde tenho a companhia de um bando de quatro jovens espanhóis que rapidamente desaparece para parte incerta. Este é um aprazível espaço de banho e de lazer que, porém, não parece muito bem cuidado. O forno e as churrasqueiras, por exemplo, estão interditos por uma tira da Proteção Civil. Anadia, no entanto, tem orgulho na Barragem da Gralheira, porque a descreve, numa placa colocada à entrada, como “a mais bela, formosa e diferente de Portugal”. Vou depois espreitar a Ermida de Nossa Senhora da Lapa, do século XVI, em Saíde, mais uma aldeia desertificada.
O Luso é o destino seguinte. Tem um bonito centro, com as termas, a igreja, o Grande Hotel, o parque e o lago. Numa pequena encosta lê-se Vila de Luso em grandes letras brancas, à maneira de Hollywood. Na Fonte de São João várias pessoas abastecem-se de água. O recorde pertence a uma mulher que carrega 11 garrafões vazios em direcção a uma das bicas.
Tomo café na esplanada do bonito Rosa Biscoito, a fazer lembrar os cafés de outros tempos. Peço depois uma fatia de Morgado do Bussaco e decido ir e voltar dez vezes ao topo do Bussaco a pé para queimar as calorias. O mais que faço, porém, é empreender um curto passeio pelo Luso, onde, tal como em tantas outras terras, impressiona a quantidade de edifícios abandonados, alguns deles magníficos. Aqui, o símbolo maior deste fenómeno é o Teatro Avenida, construído nos anos 1930 e que hoje ameaça colapso.
Nos meus ziguezagues pela região passo ainda por Algeriz e Vila Nova de Monsarros, onde a chuva finalmente me apanha. Faço um desvio até Sangalhos, atraído pelo miradouro criado junto ao pavilhão. É uma língua de madeira com vista panorâmica para a planície. O que se observa em primeiro plano é uma ETAR e mais ao longe várias povoações e as serras do Bussaco e do Caramulo em fundo.
Termino o passeio na Malaposta, onde páro no restaurante A Regional, na Nacional 1, para uma sandes de leitão. O empregado enverga uma t-shirt onde se lê “pessoas que gostam de comer são sempre boas pessoas” e trata-me por “grande chefe”. Com o Morgado do Bussaco e a sandes de leitão a fazerem de mim um homem feliz, enceto o caminho de regresso até Aveiro rogando às ursulinas que me perdoem o pecado da gula.