Aveiro, 19h37 de 2 de janeiro de 2024
Está escuro e chove. Chove muito.
A ria adivinhava-se mesmo em frente, seja pela habituação de a ver ali mesmo durante o dia, mas sobretudo pela certeza que lá está.
Nas aleatoriedades circunstanciais daquilo a que chamam vida, já não existem certezas, não se adivinham desfechos. Limitamo-nos a pensar que temos algum controlo sobre aquilo que dizem ser o destino.
Só hoje conseguiu respirar e parar para pensar um pouco sobre o que lhe aconteceu nos últimos dias.
PORTO, 22h27 de 22 de dezembro de 2023
Há precisamente 261 horas tinha entrado, como habitualmente, no Aviz, para um café e um Negroni de início de hostilidades.
A noite adivinhava-se longa e etílica e era expectável uma ressaca imperdoável, o Rafael adivinhou-lhe os pensamentos e começou pelo Negroni marginalizando o café.
Encostou-se ao balcão. No único lugar que restava, e olhou, de olhar vazio, o fundo do armário onde repousavam os Vermutes e restantes destilados.
Acordou com o seu nome… alguém o dizia alto mas com um tom de surpresa.
Não a via há demasiados anos, e o tempo e o Reino Unido sofisticaram-na. Já era linda, mas estava deslumbrante.
Reparou pouco na amiga com quem estava, porque mulheres altas sempre o perturbaram e escolheu não olhar demasiado.
Na breve conversa que tiveram, decidiram ir a Londres em fevereiro, mas o convite estava dependente da recusa de outro alguém.
Nem teve tempo de pensar… a amiga alta verbalizou-o por ele:
- “Já olhaste bem para ele? Já o ouviste? Achas que tem cara de Plano B?”.
E assim, nesse instante, batizei-a carinhosamente de Plano A.
Era bonita. Amável. Independente. Sempre sorridente. Inteligente e surpreendente.
Percebeu num fósforo que o iria fazer sorrir noutras latitudes, e despediu-se rapidamente, não terminando sequer o Negroni. Intimidado, era como se sentia.
Falaram ainda nessa noite, e durante toda a tarde do dia seguinte, descobrindo muito mais parecenças que diferenças, muito mais sorrisos que castigos.
Não se recordam os dois da cor que tinha o céu nessa tarde.
Ela ia viajar uns dias depois, mas sabiam os dois que não seria a última vez que se iriam ver.
Disseram-no alto um ao outro e combinaram o segundo dia do novo ano.
MADRID, 19h15 de 28 de dezembro de 2023
Acabado de chegar a Madrid, acendeu um cigarro com o anterior, porque se sentia estranhamente nervoso.
Não lhe disse que ia. Queria tomar conta do destino e não esperar por mais coincidências e muito menos por dia 2 de janeiro.
…
Desceu a Calle Cruz na direção das Portas do Sol com passos decididos, ao contrário do pensamento que o fazia desacelerar.
Tinham combinado no Sol e ele atrasou-se de propósito para olhá-la de longe e decidir na hora se tinha coragem. Vontade tinha.
Tocou-lhe no ombro. Viram-se os olhos. Pestanudos os dela, húmidos os dele.
Abraçaram-se e juram que se conhecem há uma vida que não os apresentou mais cedo.
Ela tinha um bilhete a mais para o Museu Rainha Sofia e apressaram-se juntos na direção da Calle de Santa Isabel e pasmaram ao ver a ampliação que o Jean Nouvel projetou.
Queriam o mesmo, o Guernica. Ele queria mais, mas não tinha a coragem republicana.
Entretanto inundaram-se em Dalí, Miró, Gertrude Stein, André Breton, Max Ernst, Juan Gris (o favorito dele) Botero, Magritte e Picasso (o favorito dela).
Finalmente o Guernica… Ela emocionou-se, ele ganhou coragem.
Num pequeno quarto escuro, onde chovia imersivamente, ele pediu-lhe um beijo.
Ela recusou, colocando uma mão no peito dele, mas tentando dar uma explicação imediata. Ele não quis ouvir. E estava tudo bem… Ainda amava alguém do passado recente de uma forma tão intensa, que uma recusa de um beijo não o incomodava.
Precisaram de café. Desceram pela Gran Via em direção à zona da Plaza Mayor e entraram no La Ferreteria. Descobriram assim que entraram que era um lugar absolutamente embriagante.
Ele inventou de imediato uma história (ela gostava das suas histórias) e corroborou-a com a ajuda de outro cliente, a quem piscou o olho para ter aprovação credível, usando-o como cúmplice na sedução literária.
Ela encantou-se com a história e ainda mais quando ele lhe disse que a inventara, revelando toda a verdade, porque simplesmente não lhe conseguia mentir.
Isso foi decisivo para repensar o beijo negado antes. Isso e os olhos molhados, que como sabemos, nunca mentem.
Os olhos disseram que sim. A boca seguiu-os. Ele levantou-se, puxou-a levemente pelo pescoço e uniram-se os lábios.
Um beijo… Assim. Um beijo sem princípio nem fim. Sem objetivo. Sem interesse.
Um beijo que os colocaria num nível de intimidade que permitiria que não mais se esquecessem um do outro.
Ele beijava de olhos abertos. Ela de olhos fechado. Viu-lhe tremer as pestanas e afastou-se quando percebeu que corria o risco de se apaixonar.
Foi fumar um cigarro. E ela ficou a pensar se queria um segundo beijo.
Quando ele voltou, ela perguntou-lhe se tinha fumado porque não suportava o sabor de tabaco.
Ele atravessou rapidamente a avenida e comprou um pacote aleatório de pastilhas.
Não se beijaram nunca mais … Ela detestava Adams de morango.
PS. Grato à Vanessa Pedreiro pelo bilhete e pela licença poética.