São muitos os prazeres na vida. Um deles é sentir um jorro de calor atingir a nossa pele e penetrar-nos na carne até aos ossos num dia frio de inverno. É sábado de manhã no Boco e pequenas nuvens de vapor evolam-se da minha boca à medida que respiro ou falo. Na Azenha da Ti Luísa, uma fogueira alimentada por pequenos troncos cilíndricos crepita, com os seus estalidos secos, a um canto do telheiro, junto ao forno. A chuva, que não pára de cair, ressalta na superfície do telheiro, onde Ilídia Neves dispõe três bancos perto das chamas. "Sabe bem estar ao borralho", diz-me. Ela e eu somos os primeiros a sentar-nos. O marido, Alfredo Neves, juntar-se-á mais tarde.
O Boco, uma pequena aldeia do concelho de Vagos, era terra de moleiros. Hoje em dia contabilizam-se 14 azenhas e três moinhos de água, mas muitos deles estão em ruínas ou em mau estado de conservação. A Azenha da Ti Luísa e a Azenha da Fonte são os únicos em pleno funcionamento; existem ainda três azenhas e um moinho bem preservados mas com falta de roda.
Ilídia mostra-me a azenha, aninhada num pequeno vale verdejante ao qual se acede por um trilho irregular de terra batida a partir do largo da capela, antes de nos instalarmos junto ao fogo. Esta mulher de 65 anos é hoje uma das últimas guardiãs da broa mimosa, cuja confeção é uma atividade ancestral que a Confraria dos Sabores da Abóbora e a associação Pro.Boco querem evitar que definhe até morrer. “Ainda há quem faça, mas são pessoas mais velhas. Os novos não querem saber”, lamenta.
Ilídia, que é cozinheira numa creche, aprendeu a receita com uma avó do marido. “Leva ovos, manteiga, farinha de trigo, farinha de milho e canela. O essencial é a canela, é o que dá o saber à broa”, explica. A massa é depois cozida em forno a lenha. Atualmente, a broa mimosa só está disponível na freguesia de Soza por altura das festas da Senhora das Candeias e de Santo Inácio, na Feira Anual da Abóbora e uma vez por mês na sede da confraria, numa bonita casa gandaresa em recuperação.
Entretanto, Alfredo chega e junta-se à conversa. Conta que a Azenha da Ti Luísa é um engenho de família que tem sido transmitido de pais para filhos. Não se conhece a data da construção, mas sabe-se que laborou até ao final da década de 1960. A Ti Luísa, sua avó, foi a última moleira. Os pais de Alfredo emigraram para França e a azenha ficou abandonada, até que, há cerca de dez anos, decidiu pô-la novamente a funcionar. “Fizemos algumas reparações, mas nunca ficou em muito mau estado”, diz. Construir a roda, com a madeira de um pinheiro tombado numa tempestade, foi a primeira tarefa, pelas mãos do mestre Dorindo Alves, de Sosa, ainda vivo.