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A Cidade Fantasma

Opinião

 

Que os fantasmas às vezes deixam pegadas, disse-me o Guia apontando para um sinuoso trilho de terra num velho e esquecido cemitério de Edimburgo. Depois avisou-nos que a história seguinte seria longa e que durante a sua narração poderíamos ser surpreendidos com um bafo quente no pescoço. Se o fôssemos, então é porque tínhamos um fantasma mesmo atrás de nós, colado às nossas costas, naquele momento.

Na capital da Escócia existem dezenas de “Ghost Tours” e talvez seja por isso que alguns Guias são bastante teatrais. Querem que os clientes lhes deixem uma boa crítica no tripadvisor para fazerem face à concorrência. Eu não vi nenhuma pegada naquele trilho de terra nem senti qualquer fantasma a respirar perto do meu pescoço, mas quando ele me perguntou se eu acreditava em fantasmas não hesitei em abanar afirmativamente a cabeça.

E ele continuou a gesticular enquanto descrevia, a mim e a mais uma boa dezena de turistas, como uma mulher a quem tinham cortado a cabeça naquele local duzentos e tal anos antes tinha continuado a andar pelo seu próprio pé, com um ramo de flores vermelhas na mão que viria a colocar na campa do seu falecido marido, e que essas mesmas flores começaram a sangrar assim que finalmente o seu cadáver caiu, já a uma distância considerável da sua própria cabeça.

Nada que me tenha deixado propriamente impressionado, admito, apesar de me ter apaixonado por Edimburgo e pela Escócia em geral. Afinal de contas, desde que emigrei que também Aveiro se tornou para mim uma cidade fantasma quando a visito. E ainda bem, os fantasmas são-me mais queridos do que as hordas de turistas que entretanto tomaram conta da cidade.

Se eu tenho alguma coisa contra os turistas?! Claro que não. Eu também sou turista sempre que a minha conta bancária mo permite, mas ao contrário de Edimburgo, Aveiro traiu os seus. Vestiu-se apenas para aqueles que a visitam por um curto período de tempo e passou a ignorar quem lá vive.

E nem aquele homem que me tenta vender uma viagem de moliceiro nem o outro que me quer mostrar a cidade num Tuk Tuk sabem que eu conheço a cidade desde que nasci. Rejeito as ofertas e continuo a caminhar numa cidade que já não existe mas que eu sinto e vejo. A das palmeiras no Rossio, a das flores na rotunda das Pontes, a das peixeiras na Beira-Mar, a dos marnotos com a pele pintada pelo Sol ou a do meu Beira a jogar no Parque da Macaca.

A cidade tornou-se tão estéril para os seus habitantes quanto fértil em memórias para quem, por falta de condições económicas, se afastou e foi viver para os subúrbios ou, em alguns casos como o meu, para outra cidade e outro país.

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Ali, nas mesmas ruas onde agora me desvio de sedentos agentes turísticos, vejo-me a correr há quase cinquenta anos em curtos passos apressados para conseguir acompanhar o meu pai. Íamos a um café que já não existe onde as conversas dos clientes ficavam suspensas no denso fumo dos cigarros fumados uns atrás dos outros pelos inúmeros clientes; onde se ouvia "Psssst!" para pedir mais um café, uma cerveja ou um copo de vinho; onde eu pilotava um pequeno avião de brincar entre mesas e cadeiras desordenadas.

Ali, nas mesmas ruas onde agora me desvio de sedentos agentes turísticos, vejo o meu avô a cumprimentar os outros avôs e avós da cidade enquanto tira e põe o seu chapéu num automático sinal de respeito por todos os que conhece. Alguns dos homens que ele cumprimenta dão-me rebuçados de São Brás ou Flocos de Neve e ouço-os falar do estado do tempo e da vida em geral.

Se em Edimburgo são os turistas que avistam de vez em quando fantasmas, em Aveiro são os próprios aveirenses que os mantêm vivos nas suas resistentes memórias. Para que a cidade possa continuar a ser aquilo que já não é.

 

 

* Crónica publicada na revista comemorativa do 5º aniversário da Aveiro Mag

 

5 Comentário(s)

joão lemos
1 jun, 2024

excelente texto ivar. é mesmo assim que às vezes me sinto. quando faço as minhas caminhadas solitárias pela cidade .... um colega meu chamou-me de "vagabundo fantasma" .... e parece-me mesmo apropriado. rostos que não conheço, ruas que não conheço, lojas que não conheço, cafés que não conheço, ..... ainda sou dos poucos que por cá ficou desses velhos tempos da cidade. ... como alguém aqui comentou: ".. é o tempo".

alberto pires
1 jun, 2024

não concordo com clara s. estamos a ficar sem memórias. em aveiro arrasa-se, não se melhora. veja-se o rossio. o parque aventura, depois de secarem todas as árvores, apesar de grandes parcerias anunciadas com a fundação serralves, não tem árvores. o parque e jardim d. pedro a quem aveiro muito, muito deve, está uma miséria. em aveiro muda-se por mudar. o edifício távora passou a atlas, a 109 a avenida europa (coitada da europa), a avenida das ágras passou a ser 25 de novembro, sem qualquer mínima melhoria. em 2025 temos de mudar. espero que para melhor.

alberto pires
1 jun, 2024

não concordo com clara s. estamos a ficar sem memórias. em aveiro arrasa-se, não se melhora. veja-se o rossio. o parque aventura, depois de secarem todas as árvores, apesar de grandes parcerias anunciadas com a fundação serralves, não tem árvores. o parque e jardim d. pedro a quem aveiro muito, muito deve, está uma miséria. em aveiro muda-se por mudar. o edifício távora passou a atlas, a 109 a avenida europa (coitada da europa), a avenida das ágras passou a ser 25 de novembro, sem qualquer mínima melhoria. em 2025 temos de mudar. espero que para melhor.

amilcar dasilva
30 mai, 2024

a nostalgia invade-me. um grande abraco conterraneo ivar.

clara s.
30 mai, 2024

a cidade que recordas já não existe, como em nenhuma outra cidade, porque os avós já não estão e os vendedores são outros. está é a cidade que os netos vão recordar e dizer exactamente o mesmo. é o tempo, sabes? abraço.

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