Um homem andrajoso está sentado nas tábuas de madeira de uma das pontes do Fórum, junto a um cartão onde escreveu "tenho fome". Cruzo-me com ele a caminho do oculista. Saio da loja com uns óculos novos. Uso lentes progressivas pela primeira vez. Dou uns passos iniciais hesitantes; o chão parece fugir debaixo de mim; meneio a cabeça até encontrar o ângulo certo de visão, de forma a observar com clareza as coisas à minha volta. O jornalismo é como uns óculos progressivos. Temos de adaptar o olhar para conseguirmos focar o que tem de ser visto - para depois ser contado. Sem isso, partes da realidade serão borrões sem nitidez.
Uma mulher velha e desdentada divaga entre habitantes e turistas transportando um copo do McDonalds numa das mãos; com uma voz suplicante diz "dê uma ajudinha", olhando fixamente nos olhos dos transeuntes.
Num centro comercial, assisto à coreografia da limpeza: uma mulher deambula pela zona de restauração recolhendo tabuleiros e peças de loiça - duas chávenas de café, uma garrafa de Ucal, um copo com um resto de galão; ajeita umas cadeiras vazias, deixando-as alinhadas; outra mulher, de luvas cor-de-rosa, limpa as mesas com um pano húmido; outra ainda esvazia os sacos do lixo.
Uma roulotte decrépita está instalada debaixo de um viaduto, fazendo parte da paisagem urbana; os flancos ainda conservam umas linhas azuis ondulantes, simulando suaves vagas do mar, um último resquício de tempos talvez felizes; agora, porém, abandonada ao lado de um grosso pilar do viaduto, parece um destroço esquecido há muito; os vidros estão tapados com placas de contraplacado brancas; do lado de fora, uma mesa está atulhada com objectos; noutra mesa estão pousados vasos com plantas. É a casa de alguém.
No beco junto ao Cemitério Central, vários entregadores de comida esperam encomendas, junto às suas motas; um dia ao final da tarde contei 14.
Na biblioteca, uma mulher de meia-idade esfrega o chão e limpa as mesas; transporta consigo um armário móvel, que desliza graças a pequenos rodízios, onde guarda detergentes, esfregões ou luvas; na casa de banho, um papel afixado na parede regista as horas a que as limpezas são feitas: 10.10h, 12.20h, 15.25h, 17.30h.
Num túnel pedonal, um jovem adulto com uma t-shirt com uma fotografia dos The Doors estampada encostou dois quadros pintados por si a uma parede e entre eles pousou uma lata vermelha no chão; tem uma moeda dentro.
Uma mulher dorme no chão, no vão de entrada de um edifício na avenida, em cima de cartões.
Duas mulheres à porta do Lidl, carregadas de sacos de compras, pedem boleia para o Olho d´Água; “o táxi é muito caro”, explicam.
Um cauteleiro, um homem já velho, de cabelo branco, com uma sacola a tiracolo, anuncia “amanhã anda à roda”, com uma voz na fronteira entre o firme e o débil; vejo-o mais tarde, noutro sítio da cidade, repetindo o mesmo estribilho.
Um homem alto e esguio está à porta da sua velha loja, olhando quem passa; na montra repousam pijamas e camisolas com os preços escritos à mão.
Num restaurante, sou servido por uma brasileira com as unhas pintadas de verde-alface.
Num parque de estacionamento, um homem e uma mulher arrumam carros.
À entrada do hospital, uma mulher vende tremoços.
Duas Testemunhas de Jeová, aprumadas e hirtas, estão especadas junto a um mostruário onde se anuncia um “curso bíblico gratuito”.
Uma mulher levanta a bandeirinha vermelha à passagem do comboio na Linha do Vouga.
Uma mulher muito velha ainda vende batatas e cebolas na sua mercearia.
Um rapaz deposita folhetos nas caixas de correio; um ginásio oferece 50 por cento de desconto nas inscrições em Julho e Agosto; um grelhador eléctrico custa 79,98 euros num supermercado; noutro papel escrito à mão alguém se oferece para pequenas reparações ao domicílio.
A lista podia continuar, é quase interminável.
São pessoas reais mas excluídas do grupo dos açambarcadores do espaço público. Respiram o mesmo ar que nós mas raramente as vemos e ouvimos. Muitas são vulneráveis.
O jornalismo não pode apenas olhar em frente ou para o que é nítido. Não é uma agenda de espectáculos ou uma montra de obras. Falha se não der atenção ao feio, ao incompleto, ao mal feito, ao oculto. Se não der voz a quem não a tem. Se não olhar para as margens, serve para quê, afinal?
Nesta série Os Invisíveis, conversamos com uma estafeta, um sem-abrigo, um pedinte, um imigrante do Bangladesh, uma freira e uma mulher que vive quase sozinha numa aldeia serrana no interior do distrito.