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Viagens na Nossa Terra: O coração das trevas

Sociedade

 

Conduzo pela EN16-3. À saída de uma curva, com Busturenga à vista, um corvo, negro como carvão, está pousado no asfalto. O carro afugenta-o e lança-se em voo para longe do perigo. Bem podia ser um presságio de mau agoiro. Mas o fogo já andou por aqui e queimou tudo à sua passagem. É um augúrio defeituoso - chegou tarde.

É o primeiro domingo após a tragédia dos fogos. Percorro uma parte do território devastado - Albergaria, Sever, Águeda. Conheço-o bem e por isso o choque é mais violento. O fogo transformou-o. É agora um chão de cinzas.

Saio de casa cedo. O primeiro vislumbre da calamidade são algumas árvores chamuscadas numa berma da Rua dos Ervideiros. Páro na bomba de gasolina para abastecer o carro. Lavei-o depois da chuva de cinzas dos últimos dias mas quando abro a tampa do depósito encontro flocos cinzentos acumulados – liberto-os com um sopro e voam como borboletas engaioladas.

Aqui, na cidade, o fogo é um eco distante. Nas bombas, um grupo de motards bebe café antes de se fazer ao caminho. Numa pastelaria em Cacia, várias mulheres consultam o horóscopo num jornal. “Vou morrer virgem”, diz uma a rir. Nuno Melo, o ministro da reconquista de Olivença, ainda sorri aos condutores num grande cartaz à saída de Aveiro.

A grande fábrica da celulose insinua-se à minha esquerda - milhares de toros empilhados num descampado junto à estrada irão alimentá-la em breve. Viro para a EN16, onde a circulação foi barrada no pico dos incêndios. No Sobreiro começa a perceber-se a real dimensão dos acontecimentos – terrenos queimados junto a estradas, casas, empresas, bombas de gasolina.

Embrenho-me agora na floresta densa - Valmaior, Rendo, Gavião, Busturenga, Ribeira de Fráguas, Vilarinho de São Roque, Vilarinho de São Luís. Com tudo calcinado ao meu redor, ocorre-me uma pergunta: como é que a tragédia não foi ainda pior? Paro em Vilarinho de São Luís, encaixado num pequeno vale, e vejo árvores queimadas nas encostas a toda a volta. O mesmo noutros lugares. Cercados pelas chamas, como escaparam? À distância, na segurança das nossas casas, é impossível imaginar o pânico e o desespero destes moradores. Em alguns casos, o anel de fogo apertou-se de tal maneira que entrou nas aldeias. Ainda assim, vejo poucas casas incendiadas. Mas muitas não arderam por milagre. Ainda se sente o cheiro a queimado – desprende-se da terra e das árvores. Não é já o cheiro vivo da matéria a arder, é como se fosse um mofo entranhado.

No Café Amanhecer, em Ribeira de Fráguas, os incêndios dominam as conversas. “O que se passou aqui não tem palavras”, diz uma mulher ao balcão, enquanto outra, mais velha, corre atrás de um pequeno cão por entre as mesas. “Levas com o chinelo”, ameaça.

A igreja da aldeia enche-se para a missa das 10. Quando entro, uma mulher de meia-idade de cabelo cor-de-rosa canta para os seus irmãos de fé. Depois sobe ao púlpito um homem que lê passagens da Epístola de São Tiago. Saio passados uns minutos, deixando para trás um rebanho a soltar “aleluias”. Pouco depois, passo por um abrigo de autocarro onde alguém colou o letreiro “Jesus vem. Prepara-te”.

Prossigo - Mouquim, Póvoa, Carvoeiro. No Café Progresso, quase vazio, impera o silêncio. Vejo cabos e postes no chão e muitos eucaliptos. Cruzo a fronteira entre Albergaria e Sever. A maravilhosa EN16 é agora um corredor ladeado por solo calcinado, como uma macabra tapeçaria tecida só com novelos pretos. Alguns troços, porém, mantêm-se imaculados. Encosto o carro numa reentrância intacta da estrada, junto a uma fiada de campainhas azuis e roxas com as suas campânulas viradas para o céu, e observo o rio e as encostas verdejantes.

Subo à Capela da Senhora dos Milagres, em Paçô, e lanço o olhar para a distância, vendo as manchas de floresta ardida. Depois sigo por Pessegueiro do Vouga, Nogueira, Mosqueiro, já às portas de Sever. Em alguns sítios pequenas colunas de fumo ainda se evolam a partir dos troncos calcinados.

Regresso à EN16 e a Albergaria. Em Angeja, um aglomerado de pessoas junta-se no adro da igreja – cada um busca conforto à sua maneira. Em Frossos, vejo a esplêndida Vila Francelina ardida à minha esquerda. Almoço no Cais do Vouga. Da janela onde me sento quase consigo ver o mural que homenageia Natália de Jesus. A artesã foi uma das vítimas dos incêndios. Tinha 81 anos. Falara com ela há um mês para combinar um trabalho sobre a sua arte de trabalhar o bunho – uma reportagem agora eternamente adiada.

Quando a conversa não é sobre os fogos, vai lá ter rapidamente. No restaurante, dois homens falam de futebol. Às tantas, um diz: “O fogo não chegou ao campo do Beira Vouga. Vá lá...”

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De Albergaria sigo para Águeda - Arrancada do Vouga, Sobreiro, A-dos-Ferreiros, Préstimo, Barrocas, Casal. O cenário aterrador é o mesmo. Casas e lugares rodeados de eucaliptais não foram consumidos graças a uma fortuna milagrosa. Na Arrancada do Vouga, uma mulher diz: “Os eucaliptos a arder pareciam fogo de artifício. Foi um inferno”. Uns quilómetros à frente, em A-dos-Ferreiros, um homem comenta: “Isto é como uma ilha. Estivemos rodeados pelo fogo. Mas graças a Deus não houve males maiores”.

Na praia fluvial do Rio Alfusqueiro olho para os flancos ardidos da serra e para as balaustradas de madeiras que sucumbiram ao fogo. Cartazes de festas permanecem colados em troncos de árvores, reminiscências de uma alegria interrompida.

A seguir ao Préstimo o território foi mais poupado. Saio do ambiente opressivo da terra queimada – aqui tudo é mais verde. Dou meia-volta - não é a beleza e a cor que hoje procuro, mas a devastação e o negrume.

Ao percorrer quilómetros sem fim de terrenos calcinados, quase me sinto o último habitante num mundo apocalíptico, como nos filmes. A terra está em carne viva. Os eucaliptos, árvores esguias e orgulhosas, são agora cadáveres sinistros.

 

Aqui os incêndios não são os números que aparecem nas televisões: ignições, hectares ardidos, meios aéreos. São uma besta real e destruidora. Quanto mais quilómetros faço, mais me pergunto: que milagre foi este, apesar de tudo, que poupou tantos lugares e tantas casas que estiveram no limiar da destruição.

Lembro-me da conversa com Benilde Neves para a série Os Invisíveis. De como falou de fogos florestais sem falar de fogos florestais. “O Saidinho agora é uma aldeia morta”, contou. Antes havia mais gente e campos cultivados. “A gente em casa tinha fartura das coisas das terras”, disse. “Hoje é só eucaliptos. Quando a gente olha para um lado ou para outro só vê eucaliptos”. Nas minhas deambulações costumo percorrer a geografia do fogo e o que encontro é isso: aldeias vazias, campos abandonados, eucaliptos.

Apesar da tragédia, a vida recupera lentamente alguma normalidade. Passo por barbearias que continuam a cortar cabelos; por mercearias que continuam a vender arroz; por funerárias que continuam a enterrar os mortos. No Préstimo, uma mulher velha cultiva uma horta de enxada na mão; na Arrancada do Vouga, um homem joga no Euromilhões; em A-dos-Ferreiros, o dono de um café serve os seus clientes.

Andei 200 quilómetros pela terra do fogo e o que me veio à cabeça foi o título de um livro lido há muitos anos. Nos últimos dias, foi este o coração das trevas.

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