O pequeno túnel sob a EN109 é o portal de entrada em Angeja. O mosaico do comércio dá alguma vida à aldeia – uma drogaria, um talho, uma farmácia, uma barbearia, mercearias, cafés. Entro no Café Vouga, no largo do pelourinho, para comprar uma garrafa de água. Preso a um gancho, como se fosse um presunto, está um exemplar do Jornal de Albergaria. A dois passos fica a sede do Jornal de Angeja, com o letreiro “mensário cultural e informativo” na fachada. Estas pequenas publicações são bastiões de uma orgulhosa resistência à morte.
Passo por algumas casas abandonadas, um flagelo nacional. Entre elas um antigo posto da Rede Única de Recolha de Leite, que agora apenas serve para afixar cartazes de festas ou de necrologias.
Rumo ao Parque do Areal e aí apanho a ciclovia que se dirige para Frossos, acompanhando o rio. Uma carrinha de venda ambulante está estacionada numa reentrância da estrada. Paro para comprar uma banana, um suplemento de energia para os quilómetros que tenho pela frente. O casal de comerciantes arranca uma de um cacho, oferece-ma e deseja-me boa viagem.
Agradeço a generosidade e vou roendo a banana enquanto pedalo até ao Parque da Boca do Carreiro, em Frossos, onde uns dias antes participara numa sessão de observação de morcegos. Um cartaz colado ao tronco de uma árvore anuncia as festas de Loure, com concertos, arruadas e jogos de solteiros contra casados. Descanso por uns minutos sentado num banco de madeira antes de voltar para trás.
Páro no restaurante Cabacinha para almoçar. Um papel colado na porta avisa que o restaurante deixou de servir almoços “devido à falta de colaboradores”. Arrisco entrar mesmo assim. Dois velhos estão sentados às mesas. Pergunto a uma mulher ao balcão se posso almoçar e ela diz que sim. Ocupo uma mesa junto à janela e como sopa de legumes e bacalhau com grão enquanto Marco Paulo canta na tv.
Regresso à bicicleta e pedalo de volta a Angeja. A Casa dos Leitões entra no meu ângulo de visão. É discreta mas é como se um grande néon luminoso, ao estilo dos casinos de Las Vegas, apontasse para ela. Duas vozinhas interiores digladiam-se numa batalha sem tréguas. A minha metade sensata triunfa e prossigo caminho sem ingerir o meu segundo almoço.
Atravesso Angeja vagarosamente, tão vagarosamente que um trator me ultrapassa como se fosse o Ayrton Senna numa corrida de Fórmula 1. Ao longe começo a ouvir o rugido da EN109 e da A25. Afocinho novamente pelo túnel, que me devolve aos campos do Baixo Vouga, onde o milho cresce em abundância. Esta fronteira marca o fim do território do alcatrão – a partir daqui só gravilha e terra batida. A fricção áspera dos pneus contra o solo proporciona uma sensação de inocente aventura. Em alguns locais, os trilhos estão minados com excrementos de gado da cor de chocolate negro com 90 por cento de cacau. Ziguezagueio entre eles. Ao mesmo tempo que tomo atenção às armadilhas do caminho - os montículos de bosta, algum entulho ali despejado, buracos - observo as árvores e as plantas e sinto-me livre. Pelo meio, alivio a bexiga e engulo um inseto. No pilar de um viaduto ferroviário alguém pintou a inscrição “PSD” - procurar votos aqui é o mesmo que procurar votos na lua, penso.
O Baixo Vouga é especial mas continua a ser um segredo bem guardado. Talvez seja melhor assim. Tirando dois ou três agricultores montados nos seus tratores e alguns espécimes da raça Marinhoa, toda aquela vastidão é minha. Cinco horas e 30 quilómetros depois, chego a casa. Só então o sol desponta num esplendor quente e dourado, dissipando a lúgubre cor de cimento por cima da minha cabeça.
Chega ao fim a minha epopeia bucólico-rural a que poderia chamar Green Odissey ZX 76-F Turbo. A bicicleta está revestida por uma fina camada de pó e eu tenho as pernas cansadas. Mais tarde pego no bloco onde rabisquei alguns apontamentos com a minha Pilot G-TEC-C4, sento-me ao computador e começo a escrever. O pc está velho e lento, um pouco como eu, mas ainda ostenta as letrinhas “ASPIRE” gravadas junto ao teclado. Esta pequena caixa de plástico, circuitos e placas é um velho e leal parceiro de escrita. Devia fazer-lhe uma carícia, como se fosse o dorso de um gato. Merece todos os louvores. Tal como o Baixo Vouga Lagunar, um verdadeiro tesouro de paz, silêncio e verde a que não me canso de regressar.