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Viagens na Nossa Terra: Toquem as trombetas

Roteiro

 

Fine Eye UB-157 e Pilot G-TEC-C4 soam a dispositivos tecnológicos altamente sofisticados congeminados por grandes cabeças. Imagino-me a visitar uma feira de ciência e a ver expostos, perante o assombro geral, a sonda espacial Pilot G-TEC-C4 ou o submersível Fine Eye UB-157. A verdade, porém, é menos excitante. São objetos mais modestos: pequenos cilindros plásticos que libertam um fio de tinta quando uma das extremidades entra em contacto com o papel. Ou seja, esferográficas. É muito frequente exibirmos um bem vulgar como se fosse o pináculo do refinamento e da complexidade técnica. Chega a ser caricato.

O mesmo com a irresistível pulsão de ordenarmos tudo no mundo em escalas e hierarquias, na nossa busca incansável por heróis, ídolos e vencedores. Um título de jornal diz: "E o prémio para o melhor tomate do Douro vai para António Manuel Pina". Há algo de inquietante nesta competição permanente. Nem o tomate escapa.

Ao ler este título decido eu próprio investir-me da autoridade de decretar um veredicto: o prémio para o melhor lugar de Aveiro vai para o Baixo Vouga Lagunar. Mas na verdade nem tudo tem de ser um campeonato e esta é, claro, uma escolha tão discutível como outra qualquer.

É meio da manhã. Encho o cantil de água e parto na minha bicicleta, debaixo de um céu metálico que me acompanha durante toda a viagem. A espaços, o sol quase fura a tampa de nuvens, emprestando à atmosfera uma fugaz tonalidade âmbar. Sigo por estradas de asfalto até Sarrazola, desço em direção ao rio e aos clubes navais e atravesso a ponte para a margem direita. A melhor parte começa agora.

O Baixo Vouga é um labirinto de caminhos rurais que serpenteiam entre campos agrícolas e através dos quais é possível chegar a Salreu, a Canelas ou a Angeja. O rio e os retorcidos braços da ria estão sempre a uma distância curta. Os trilhos junto ao rio, com bosques de vegetação densa e abundante, são os mais bonitos. Há troços em que as copas das árvores dobram para dentro formando túneis maravilhosos que nos encapsulam no seu interior. Com o auxílio de uma aplicação digital, identifico acácias, salgueiros, nogueiras, carvalhos, choupos, amieiros, eucaliptos, amendoeiras-da-praia, árvores-do-fumo, amoreiras. E margaridas, madrugadas, uvas-de-rato, chicória, dedaleiras, robínias, fetos, angélicas silvestres, lúpulo e trombetas.

Hoje quero chegar a Angeja e depois rumar a Frossos. Sigo as indicações colocadas ao longo do percurso. Onde elas não existem, confio na intuição. Bafejado com um fraco sentido de orientação, como um GPS deficiente, é frequente o instinto trair-me. Numa bifurcação sigo pela via errada – o trilho afunila até deixar de ser um caminho transitável. A meio, um boi imponente barra a minha progressão. Pasta pachorrentamente, de focinho no chão. Parece alheio a intrusos mas mesmo distraído continua a ser um bloco maciço e poderoso de carne e chifres. Não quero que me encare como uma ameaça e, tão silencioso como um gafanhoto, dou meia-volta e vou à procura do trilho certo. Como na vida, não há caminho sem percalços.

Já bem embrenhado no território, passo por baixo da A25, da EN109 e da Linha do Norte, como uma toupeira num mundo subterrâneo. A civilização apressada passa por cima da minha cabeça. Vou comendo as últimas amoras - gordas, escuras e doces. Da próxima vez já não as encontrarei. Há algo de desolador no fim da época das amoras. A promessa do frio começa a insinuar-se.

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O pequeno túnel sob a EN109 é o portal de entrada em Angeja. O mosaico do comércio dá alguma vida à aldeia – uma drogaria, um talho, uma farmácia, uma barbearia, mercearias, cafés. Entro no Café Vouga, no largo do pelourinho, para comprar uma garrafa de água. Preso a um gancho, como se fosse um presunto, está um exemplar do Jornal de Albergaria. A dois passos fica a sede do Jornal de Angeja, com o letreiro “mensário cultural e informativo” na fachada. Estas pequenas publicações são bastiões de uma orgulhosa resistência à morte.

Passo por algumas casas abandonadas, um flagelo nacional. Entre elas um antigo posto da Rede Única de Recolha de Leite, que agora apenas serve para afixar cartazes de festas ou de necrologias.

Rumo ao Parque do Areal e aí apanho a ciclovia que se dirige para Frossos, acompanhando o rio. Uma carrinha de venda ambulante está estacionada numa reentrância da estrada. Paro para comprar uma banana, um suplemento de energia para os quilómetros que tenho pela frente. O casal de comerciantes arranca uma de um cacho, oferece-ma e deseja-me boa viagem.

Agradeço a generosidade e vou roendo a banana enquanto pedalo até ao Parque da Boca do Carreiro, em Frossos, onde uns dias antes participara numa sessão de observação de morcegos. Um cartaz colado ao tronco de uma árvore anuncia as festas de Loure, com concertos, arruadas e jogos de solteiros contra casados. Descanso por uns minutos sentado num banco de madeira antes de voltar para trás.

Páro no restaurante Cabacinha para almoçar. Um papel colado na porta avisa que o restaurante deixou de servir almoços “devido à falta de colaboradores”. Arrisco entrar mesmo assim. Dois velhos estão sentados às mesas. Pergunto a uma mulher ao balcão se posso almoçar e ela diz que sim. Ocupo uma mesa junto à janela e como sopa de legumes e bacalhau com grão enquanto Marco Paulo canta na tv.

Regresso à bicicleta e pedalo de volta a Angeja. A Casa dos Leitões entra no meu ângulo de visão. É discreta mas é como se um grande néon luminoso, ao estilo dos casinos de Las Vegas, apontasse para ela. Duas vozinhas interiores digladiam-se numa batalha sem tréguas. A minha metade sensata triunfa e prossigo caminho sem ingerir o meu segundo almoço.

Atravesso Angeja vagarosamente, tão vagarosamente que um trator me ultrapassa como se fosse o Ayrton Senna numa corrida de Fórmula 1. Ao longe começo a ouvir o rugido da EN109 e da A25. Afocinho novamente pelo túnel, que me devolve aos campos do Baixo Vouga, onde o milho cresce em abundância. Esta fronteira marca o fim do território do alcatrão – a partir daqui só gravilha e terra batida. A fricção áspera dos pneus contra o solo proporciona uma sensação de inocente aventura. Em alguns locais, os trilhos estão minados com excrementos de gado da cor de chocolate negro com 90 por cento de cacau. Ziguezagueio entre eles. Ao mesmo tempo que tomo atenção às armadilhas do caminho - os montículos de bosta, algum entulho ali despejado, buracos - observo as árvores e as plantas e sinto-me livre. Pelo meio, alivio a bexiga e engulo um inseto. No pilar de um viaduto ferroviário alguém pintou a inscrição “PSD” - procurar votos aqui é o mesmo que procurar votos na lua, penso.

O Baixo Vouga é especial mas continua a ser um segredo bem guardado. Talvez seja melhor assim. Tirando dois ou três agricultores montados nos seus tratores e alguns espécimes da raça Marinhoa, toda aquela vastidão é minha. Cinco horas e 30 quilómetros depois, chego a casa. Só então o sol desponta num esplendor quente e dourado, dissipando a lúgubre cor de cimento por cima da minha cabeça.

Chega ao fim a minha epopeia bucólico-rural a que poderia chamar Green Odissey ZX 76-F Turbo. A bicicleta está revestida por uma fina camada de pó e eu tenho as pernas cansadas. Mais tarde pego no bloco onde rabisquei alguns apontamentos com a minha Pilot G-TEC-C4, sento-me ao computador e começo a escrever. O pc está velho e lento, um pouco como eu, mas ainda ostenta as letrinhas “ASPIRE” gravadas junto ao teclado. Esta pequena caixa de plástico, circuitos e placas é um velho e leal parceiro de escrita. Devia fazer-lhe uma carícia, como se fosse o dorso de um gato. Merece todos os louvores. Tal como o Baixo Vouga Lagunar, um verdadeiro tesouro de paz, silêncio e verde a que não me canso de regressar.

 

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