O que deve sentir um intruso quando penetra num refúgio de isolamento e introspeção? Chego ao carmelo com uns minutos de antecedência e permaneço no carro a observar o edifício, numa rua pacata de São Bernardo. À hora marcada entro no recinto. O portão está aberto e uma mulher cuida do jardim. Estou vagamente inquieto. O que vou encontrar? Como me receberão? Responderão às minhas perguntas?
Toco à campainha e um mecanismo faz abrir a porta. No vestíbulo, uma irmã entreabre as portadas de madeira de uma janela rasgada numa parede e pede-me que avance para outra divisão. A sala dispõe de cortinas a meio, revestindo grades metálicas do chão ao teto que dividem o espaço em duas metades. Daquela fronteira para diante não posso passar - é chão que só aquelas mulheres em reclusão podem pisar. É um lugar despojado – como despojada é a vida das irmãs no carmelo, explicar-me-á mais tarde Graça Maria do Menino Jesus. Ela e a madre-superiora, Sofia da Cruz, abrem as cortinas, desvendando-se a si próprias e à sua metade da sala. Envergando hábitos, as duas freiras recebem-me como se recebe uma pessoa querida – apertam-me as mãos, falam, sorriem. Este acolhimento caloroso faz-me sentir bem-vindo e o nervosismo dissipa-se.
Graça Maria do Menino Jesus e Sofia da Cruz são duas das 18 irmãs do Carmelo do Cristo Redentor das Carmelitas Descalças de Aveiro. Por email pedira para ser recebido e para conversar com uma delas. Não sabia que resposta esperar ou sequer se receberia uma. Mas ela foi rápida. Na mensagem Sofia da Cruz escreveu: “muitas vezes as vidas invisíveis estão carregadas dum sentido fascinante, que fala mais alto e aponta mais além do visível e superficial”. Logo combinámos um dia e uma hora, na manhã de uma segunda-feira.
A madre-superiora abandona a sala. Sentamo-nos, eu e Graça Maria, cada um do seu lado da fronteira de metal. A primeira coisa que me diz é isto: “É para mim uma grande alegria esta oportunidade que Jesus me deu de ser sua testemunha. Partilharei a minha vida conforme sei, na minha simplicidade”.
Quer-me falar de si?
O meu nome é irmã Graça Maria do Menino Jesus, nasci no lugar da Gândara, em Vagos, a 4 de Outubro de 1968, três anos após o encerramento do Concílio Vaticano II. Para mim é um sinal muito grande eu ter nascido em plena renovação da Igreja. Nasci numa família católica. Os meus pais ensinaram-me a participar na eucaristia dominical e na recitação do santo rosário em família. Minha mãe chamava-se Benigna do Céu Santos e meu pai Silvino Marques Rumor. No meu batismo deram-me o nome de Graça Maria Santos Rumor, que foi escolhido por eles e pela minha avó, que recordo com muito amor. Sou a filha mais velha dos meus pais, que tiveram sete filhos, ainda todos vivos. Com seis anos recordo três acontecimentos que muito gostei: entrei na escola e ainda me lembro da roupa que levei no primeiro dia; entrei na catequese, que para mim foi muito importante, e ainda me recordo da sala, dos colegas, das catequistas; e também recordo o despertar da minha vocação.
Como é que isso aconteceu?
Eu ia com a minha mãe pela estrada, de mão dada, e avistei uma religiosa. Aquilo não era a religiosa, era Deus, um sinal de Deus. Deixei a minha mãe, foi a primeira vez que me senti independente. Corri, cheguei junto dela e disse: ó freira, eu quero ser freira. E ela disse: ó minha menina, serás quando tiveres 20 anos. Isso para mim pareceu-me uma coisa muito longe, mas estava tão convencida que nem perguntei como - ia ser, pronto.
Foi fazendo a sua vida normal…
Aos sete anos fiz a minha primeira comunhão, foi um dia muito feliz pela festa familiar e pela liturgia eucarística, onde tive a consciência de receber Jesus no meu coração. Isso foi muito claro. Foi também a primeira vez que me deparei com a diferença social entre pobres e ricos. Foi um choque. Nesse dia os meus pais deram boleia a uma amiga minha, que tinha um vestido tão pobre e que nem era dela. Tive muita pena e perguntei-me a mim mesmo porquê esta diferença de pobres e ricos. A respeito desta menina tive ainda outra experiência que me marcou muito. A minha professora Adelaide levou os meus colegas, dois a dois, a passar um fim de semana com ela e a sua família. A minha colega foi esta menina pobre, que não foi por não ter roupa. Fui eu sozinha.
Do que mais se lembra dessa fase da sua vida?
Entre os meus 12 e 13 anos destaco dois acontecimentos importantes: apareceu uma religiosa em casa dos meus pais a pedir alimentos e aproveitei para lhe dizer que queria ser freira - isto estava dentro de mim. Ela respondeu a mesma coisa: seria quando tivesse 20 anos. Ofereceu-me uma estampa de Nossa Senhora de Fátima, dizendo-me que era do carmelo de Coimbra, onde estava a irmã Lúcia. Senti que era um privilégio enorme. O segundo acontecimento foi que em 1983 fazia-se a fundação deste carmelo e as minhas catequistas pediam para nós renunciarmos aos bombons e aos gelados para a construção do convento. Levei este pedido a sério e disse-o aos meus pais. A nível de catequese fiz um percurso normal e a nível de estudo estudei no Colégio de Calvão como estudante-operária. O liceu ficava muito distante e o acesso era só por autocarro - a paragem era em Pinhais. Os meus pais não quiseram e o meu pai, que era chofer da Rodoviária Nacional, sabia que o Colégio de Calvão ia abrir. Conversou comigo e os meus irmãos e disse que nós iríamos estudar mais tarde. O que o pai dizia estava tudo bem.
Teve algum namorico?
Namorei e diverti-me como uma jovem normal. Mas sentia dentro de mim um amor tão forte de Jesus que me saciava plenamente. Uma vez, estava num encontro de namorados e o que sentia era tão novo e tão diferente que deixei tudo e fui-me embora. Fui para casa dos meus pais e no meu quarto perguntava como se pode sentir tanto amor dentro de nós. Virei-me para Nossa Senhora de Fátima e perguntei: mãe, diz-me o que Jesus quer de mim, que eu quero responder dando-lhe o meu amor. No dia seguinte a minha tia perguntou o que se passou, pensavam que era alguma coisa entre namorados. Eu estava diferente. Respondi com um sorriso. Não podia dizer a verdade, que estava a acontecer algo espiritual em mim, eles não iam entender. Sentia-me livre, leve, feliz, com capacidade de amar a todos. É uma experiência que me acompanha toda a vida. Foi a primeira vez que senti que todos somos irmãos, filhos do mesmo pai e habitados pelo mesmo Deus. Sabia que era escolhida para Jesus para uma missão que eu não sabia e por isso estava atenta aos sinais. Foi nessa altura que numa peregrinação a Fátima comprei as memórias da irmã Lúcia e no santuário de Nossa Senhora de Vagos comprei uma bíblia – até então não tinha. Recordo-me que renunciei a todas as guloseimas para comprar a bíblia, sem que os meus pais o soubessem, para não desconfiarem do que se estava a passar dentro de mim. Como o dinheiro não chegava, uma senhora ofereceu o restante. Neste tempo vieram à minha terra um sacerdote e uma religiosa da congregação do Divino Espírito Santo, falei com a irmã Amélia, e ela acompanhou-me no percurso vocacional. Foi então que no Natal, passado em casa do meu tio, onde nos divertíamos muito e o meu pai tocava concertina, senti que alguém me chamava e outra vez deixei tudo, e fui para casa dos meus pais, que era ao lado. Ajoelhei-me junto do presépio e disse: Jesus, sei que me queres para ti e eu não vejo como. Peço-te que este Natal seja o último em casa dos meus pais. Amo muito os meus pais e os meus irmãos, mas o teu amor é maior que tudo. E assim foi. Uma senhora da minha terra conhecia três carmelos: Coimbra, Braga e Aveiro. Quando a ouvi falar do carmelo de Coimbra, logo pensei viver a minha vida com uma santa, a irmã Lúcia. Quem é que não quer? Era a coisa mais maravilhosa. Mas disse de mim para mim: se for para Coimbra, vou pensar toda a vida que fui por causa da irmã Lúcia, e eu quero ir por Jesus. Então disse que queria ir para o carmelo mais pequenino, que era este. E não estou arrependida. A inauguração deste carmelo foi em Fevereiro de 1991 e um ano depois fiz o pedido. Combinei com a irmã Maria da Graça, prioresa nessa altura, entrar o mais rápido possível, a 19 de Março. Os meus pais, irmãos e tios aperceberam-se, nem sei como, porque eu não disse, só lhes ia dizer um dia antes.
Nunca lhes falou nisso?
Fui-me apercebendo por sinais que eles iam opor-se fortemente à minha vocação. Então estava a guardar para a véspera, para não os fazer sofrer.
Foi só na véspera que eles ficaram a saber?
Foi tão grande a oposição que tive de entrar a 17 de Março. Liguei para as irmãs para saber se me podiam receber uns dias antes. E disseram que sim.
E como é que as coisas se passaram?
A minha tia e a minha avó vieram comigo de táxi. Quando o táxi começou a andar, ó minha vida, tive vontade de olhar para trás, porque todos estavam a dizer-me adeus da estrada. Mas não olhei. Tive essa força. Se tivesse olhado, mandava parar o táxi e não vinha para o carmelo, porque amava e amo muito a minha família. Nesse momento o meu sim a Jesus foi na fé. Ainda passei pelo Colégio de Calvão para me despedir do meu irmão, que era pequenino. Expliquei-lhe e disse-lhe por que vinha. Ele entendeu e demos um abraço, que nunca tínhamos dado.
E como foi com os seus pais?
Com os meus pais já não foi assim. Ficaram muito tristes. A minha mãe só me visitou 15 anos depois.
Nunca falaram durante esse tempo?
De vez em quando, por telefone. Mas era sempre “vem-te embora, sai daí…” Quando ela me veio visitar, pediu-me perdão por não ter aceitado a minha vocação, já feliz. Esteve com toda a comunidade, partilhámos um bolo, que ela fez… Foi muito bonito.
E o seu pai?
O meu pai nunca me visitou.
Perderam totalmente o contacto?
Tive oportunidade de estar com ele três vezes. Numa das vezes foi quando tivemos eleições; as pessoas reúnem-se para nos levar a votar e eu pedi à nossa madre para que a minha irmã trouxesse o meu pai e seria ele a levar-me a votar. Eu pensei que ele não viesse, mas veio – não entrou mas pelo menos estive com ele aquele bocadinho, daqui até à Junta de Freguesia de São Bernardo. Foi muito bom. Além desta vez encontrei-o outras duas vezes, sem ter planeado, quando saí do carmelo para ir a consultas.
Alguma vez sentiu mágoa por os seus pais não a visitarem?
Nunca. Foi um caminho que Deus estava a fazer comigo, no sentido de me unir ao seu mistério de salvação de toda a humanidade. Vi este acontecimento de os meus pais não aceitarem como uma oportunidade para unir-me à paixão do Senhor. Nunca senti revolta, pelo contrário. Amei muito os meus pais e não me sinto frustrada nem infeliz. Foi o caminho que Deus escolheu para eles e para mim.
Como era a sua vida antes de entrar no carmelo?
Era estudante-operária. Trabalhava e estudava. Trabalhava numa fábrica de tacos. Fui eu que tomei a iniciativa. Disse ao meu pai que me ia inscrever no centro de emprego e esta foi a primeira coisa que apareceu. Tinha 17/18 anos. Quando vim para o carmelo fui lá despedir-me e o dono da fábrica disse que gostou imenso de mim e que a porta estava aberta. Foi muito bonito.
Como foi a sua chegada ao carmelo?
Tinha marcada certa hora para chegar ao convento e com a dificuldade da despedida – foi a primeira vez que vi o meu pai a fumar e a chorar, para suportar o sofrimento pediu cigarros ao meu tio – cheguei mais tarde. E ainda fui com a irmã Maria da Graça e a irmã Inês conhecer a mestra de noviças, que se encontrava no hospital. A minha tia e a minha avó ficaram no locutório com a comunidade. A minha avó chegou a dizer “olhem que se vocês não tratam bem a minha neta eu dou-vos com a minha bengala”.
A sua vida mudou ao entrar por esta porta…
O que mais gostei foi ver uma comunidade de amor - o amor a Deus, à igreja e ao mundo. Isto marcou-me muito. Fiz o postulantado e a 1 de outubro de 1992 tomei hábito, ficando com o nome de irmã Graça Maria do Menino Jesus. A comunidade reunida decidiu que eu ia ficar com esse nome. Só soube na cerimónia de tomada de hábito e fiquei muito feliz.
Todas mudam de nome?
Nós por princípio mudamos de nome para simbolizar uma atitude diferente na nossa vida. Até aqui temos uma dimensão mais familiar e social, e agora venho servir Jesus. Mudar de nome é uma tomada de consciência de que tenho uma vida diferente e tenho de responder a essa vida.