David Afonso
Professor
Françoise Choay (1) fala-nos de duas linhagens de monumentos: a primeira, a mais antiga, é a dos monumentos que são erigidos intencionalmente para memória de um acontecimento, pessoa ou ideia (ex.: Monumento aos Combatentes, Estátua da Liberdade); a segunda, mais recente, é a dos monumentos históricos, isto é, edifícios e artefactos cuja importância cultural, histórica ou estética reconhecida motiva a sua preservação. O Monumento Evocativo da Muralha de Aveiro ocupa uma posição curiosa porque será, segundo esta classificação, um monumento erigido a um monumento histórico. Talvez a perplexidade dos aveirenses - e não só - comece por aí mesmo. O que vem a ser exatamente aquilo?
Pitoresco ou Pós-Moderno?
Não é fácil determinar a natureza e o propósito do monumento plantado naquela rotunda. Monumentos dedicados a preservar a memória de monumentos históricos desaparecidos não abundam. Na verdade, nem sequer me ocorre qualquer exemplo similar. A peça, em si mesma, é bastante ambígua porque é a representação estilizada de uma muralha em ruína. Esta opção certamente não irá facilitar a leitura do cidadão desprevenido, que desconheça a história da cidade, podendo julgar estar perante um fragmento arqueológico sobrevivente da muralha original do século XV, e não perante um exemplar de arte pública do século XXI.
Este revivalismo do pitoresco poderia fazer sentido no período do romantismo, durante o qual espaços públicos e, sobretudo, jardins foram invadidos pela mania das falsas ruínas pseudo-medievais ou pseudo-romanas. Entre nós temos o conhecido exemplo dos jardins do Palácio de Monserrate, em Sintra, onde existem falsas ruínas como parte da composição paisagística romântica idealizada por Francis Cook. Esta revisitação, completamente fora do seu tempo, do pitoresco, mesmo que involuntária, não nos parece feliz em função do propósito com o qual se promoveu a edificação daquele monumento, pois cria condições para equívocos de interpretação que sabotam o seu objetivo.
Por outro lado, a ruína projetada por Siza Vieira também parece ser um exemplar tardio de pós-modernismo, um estilo arquitetónico que muitas vezes recria elementos históricos com um caráter deliberadamente artificial. Um exemplo paradigmático é a Piazza d´Italia (1978), em Nova Orleães, projetada por Charles Moore. Sendo o pós-modernismo uma reação ao cansaço do modernismo dominante (o então chamado “estilo internacional”) no pós-guerra, gera perplexidade esta opção vinda justamente de alguém que, sem enjeitar os ensinamentos do modernismo, desenvolveu ao longo do seu percurso uma linguagem arquitetónica própria, sensível ao contexto, aos materiais e às tradições locais. A Biblioteca da Universidade de Aveiro, também da autoria de Siza Vieira, é um belo exemplo dessa abordagem que procura alternativas à linguagem modernista pura e dura. Já o monumento-ruína parece excêntrico relativamente a este percurso e mais próximo de um pastiche pós-modernista do que do diálogo com o modernismo que conduziu Siza ao Pritzker. Muitos historiadores e críticos provavelmente terão dificuldade em enquadrar este objeto na sua obra.
Turismo e Cultura-Espectáculo
Talvez não valha a pena insistir tanto na hermenêutica da arquitetura, porque a chave estará na encomenda, na decisão política. É um monumento da mesma forma que o Castelo da Bela Adormecida da Disneylândia ou as falsas ruínas romanas do parque temático da Cinecittà, em Roma, são monumentos: não valem tanto por si, mas pelo valor cenográfico que emprestam a um produto de entretenimento. Há uma clara tendência nas principais cidades portuguesas, da qual Aveiro não é exceção, em promover o turismo como a atividade económica dominante. Para esta estratégia, mais ou menos assumida, concorrem várias iniciativas e programas, que seria fastidioso analisar agora. Contudo, uma delas merece destaque, pois em Aveiro tem assumido um papel muito importante: refiro-me à cultura-espetáculo, uma forma de instrumentalizar a cultura, sujeitando-a a uma lógica de entretenimento e espetacularização para construir uma imagem atrativa da cidade para os fluxos turísticos. Esta tendência manifesta-se normalmente através de grandes eventos, festivais e muita programação de rua.
A recente intervenção de Rui Chafes nas pontes, que nos propõe um monumento a nada, uma espécie de bibelot urbano que só pode ser apreciado na sua plenitude pelos turistas que se deslocam em moliceiros convertidos numa espécie de tuk-tuks da ria, e o Monumento Evocativo à Muralha de Siza Vieira inscrevem-se nesta lógica da cultura-espetáculo. Tal como a Disneylândia, também já temos o nosso castelo de fadas. A diferença é que, no primeiro caso, estamos num parque temático e aceitamos tacitamente as regras do jogo, temos plena consciência de que participamos de uma fantasia laboriosamente construída para nossa fruição descomprometida. É uma forma de escapismo. No segundo, não. Aveiro não é, pelo menos ainda, um parque temático, pelo que há uma obrigação ética de evitar ambiguidades históricas e patrimoniais. Não é para a comunidade local que monumentos como estes são erigidos.
Uma Muralha, Várias Histórias
Por fim, devemos lembrar que a muralha, na verdade, não desapareceu e continua presente, prestando um serviço inestimável à cidade e à região. A pedra serviu, sobretudo, para construir e fixar a boca da Barra, uma obra que salvou a economia de toda a região. Mas não só: serviu também para construir o primeiro liceu do país concebido especificamente para esse fim. Muitos aveirenses talvez não saibam que a Escola Homem Cristo é um marco na história da arquitetura nacional por ser o primeiro edifício projetado de raiz como liceu. Celebrar as muralhas de Aveiro obriga-nos a uma leitura mais alargada do território, da paisagem urbana e da própria história. Não se pode evocar a muralha sem considerar essa densidade. Mais do que uma torre de fantasia que apenas assinala de forma lacónica a pré-existência da muralha, seria preferível demarcar o seu perímetro no solo, assinalando a localização das portas e postigos. Este percurso permitiria uma leitura mais informada da paisagem urbana e serviria tanto a turistas quanto à comunidade local, cuja coesão identitária depende muito da relação que estabelece com o espaço que habita. Até teria sido uma solução mais económica e poderiam sobrar recursos para produzir informação bibliográfica e digital (como modelos 3D) sobre a muralha.
Adenda: Já que estamos a discutir como preservar e potenciar a memória histórica aveirense, sugiro aos responsáveis que olhem com atenção para a ruína do Moinho dos Bóias, à entrada da cidade. Esse sim é um monumento histórico a ameaçar ruína de verdade e, reparem, até é em pedra vermelha de Eirol – a mesma de que era feita a muralha e que não foi possível encontrar para edificar o Monumento Evocativo. Afinal, qual é o plano? Deixá-lo ruir para depois se encomendar a um arquiteto de renome internacional um memorial evocativo do moinho que ali existia?
(1) Françoise Choay - Alegoria do Património, ed. 70, 2010