Não será surpresa, nem resultado de grande inspiração ou um processo altamente inventivo, o título do livro. Tem duas razões que fácil e rapidamente se explicam. A primeira: o livro é de um autor aveirense de gema, escrito em Aveiro, com muitos assuntos locais e frequentes referências a esta cidade e região encantadoras. A segunda: este título atreve-se a uma inversão, não mais do que docemente jocosa, do que Wim Wenders, o realizador de cinema alemão, utilizou em “O Céu sobre Berlim – Der Himmel uber Berlin”. No caso berlinense a importância dos anjos levou a câmara de filmar a olhar o céu, na circunstância que escolhemos o céu é a abóbada da nossa condição gravitacional, terrena.
Se no “Coral da Polinésia – As Narrativas do Mar Insone”, o livro publicado há 2 anos, se reuniram 55 mosaicos ficcionais a configurar um painel policromático e polifónico, o presente formato junta três géneros distintos: crónica, poesia e dramaturgia.
Os Dias das Crónicas
A crónica possui um âmbito híbrido que se presta ao cais e a todo o caminho navegável, ou seja, parte do facto, da pedra, da barra, da amarra, da embarcação e tem diante de si a fantasia da viagem, o sonho, a invenção, a navegação. Facto e literariedade.
As crónicas do livro foram escritas entre julho de 2022 e julho de 2024. Quase todos os temas, senão a totalidade, versam Aveiro e os aveirenses. Passam pela memória de um amigo traído pelo cancro e das aventuras das férias para lá ponte de Carcavelos, antes da A25 ser a cicatriz na pele de água e de lamas e ser a catarata no olho que recorda esse pretérito. Visitamos a antiga Lota para que aquele espaço não seja mais um monte de cimento sem respeito pelo histórico da atividade aveirense ali desenvolvida e para que não ignore a potencialidade paisagística de fruição social. Seria terrível roubar o miradouro ao povo e deixá-lo para um punhado de privilegiados. Recordamos os bairros, as pessoas nas praças, as bolas a correrem em terrenos de encontro, de socialização e de amizade, Aveiro tinha uma outra vida, uma outra alegria. Pensar na lógica dos bairros é um imperativo para uma comunidade mais coesa e mais feliz.
Saudamos, noutras cónicas, João de Afonso e a honra em termos como conterrâneo um navegador que fez o melhor dos descobrimentos portugueses: o estabelecimento da diplomacia baseada na humanidade, no comércio justo e na reciprocidade. Olhamos para outros homens da grande gesta local, como Mário Sacramento e lembramos o conteúdo pragmático da sua Carta Testamentária. Ouvimos o eco da voz de José Afonso e o dos Homens de Abril, escutamos os coros dos Congressos da Oposição Democrática. Contrastámos a humildade de Joana, e o seu recolhimento em Aveiro, com o ufanismo de quem usa Aveiro para amealhar caminho para venturas pessoais.
São Gonçalinho seria romagem incontornável, a passar pelo Mordomo que o Arquiteto Daniel Tércio desenhou e a Vista Alegre deu à luz no seu ateliê de magia e beleza. O “mordominho” de porcelana tem o rosto do Sr. João Carlos, nosso parceiro querido cuja bonomia e simplicidade nunca esqueceremos. Citamos a Ti Emília, uma personagem da Capela que nos habituámos a amar, referimos o Dr. Manuel Guerra e a Marcha de São Gonçalinho, a Marcha do Mordomo, que precisa do devido destaque e reconhecimento.
Felicitamos propostas que se tornaram realidade como a Rádio Universitária de Aveiro, congratulámos o Teatro e, a propósito, o CETA, os seus fundadores e a ligação ao Semanário Litoral, jornal que tanta falta faz à informação, ao pluralismo, ao debate e à cultura aveirenses. Os passos também seguiram pelo Cineteatro Avenida que, graças ao arrojo, a Bertrand vai devolver, retornando a majestade ao edifício, pelo menos em boa parte do imóvel. Percorremos a Rua da Pêga para lhe atribuir uma nova ambição, ainda que estribada na antiga vocação. Fomos ao futuro no TEDxAveiro e não deixamos de esperar que ele nos traga o feriado municipal de Aveiro a 16 de maio, para enaltecer o Conselheiro Queirós e os muito amados Mártires da Liberdade.
Falamos de estátuas a propósito das de Paulo Neves, que fazem sentido, que produzem sentidos no espaço público, em contraste com o crime de terrorismo artístico e cultural que foi a remoção e a condenação ao lixo das peças de arte urbana do Luis Queimadela. Uma opção autoritária, que suja a política de defesa e preservação do património local e que atenta gravemente contra a liberdade de expressão.
Estivemos em muitos lugares de Aveiro, nas praças, avenidas, restaurantes que existiram e que fecharam. Contamos histórias que foram sérias, mas que precisavam da roupagem poética.
Projetamos pontes para gerir margens futuras:
- Estabelecer a entidade para gerir a Ria de Aveiro; Avançar com a Cidade da Saúde, incluindo o hospital de nova geração clónica e tecnológica; Edificar o Campus da Justiça; Acabar com a cobrança das Portagens, mormente das que cercam Aveiro; Incluir com prioridade no Plano Ferroviário Nacional a ligação Aveiro – Salamanca; Renovar a ambição para a Linha do Vouga; Aproveitar o Quartel de Aveiro; Recuperar a ideia da ponte para S. Jacinto; Duplicar a via de Acesso Sul à A1; Alargar as estruturas Regionais de Cultura, a áreas performativas como o Bailado e o Teatro; Executar o Eixo Rodoviário Aveiro/Águeda.
Estas propostas são compartilhadas por muitos aveirenses, umas são jovens atrevidas, outras são velhas teimosas. Umas ou outras mostram que a enunciação, pese a sua inexistência, tem um significado quase trágico: a perda de centralidade e capitalidade de Aveiro. No que é verdadeiramente essencial e político a comunidade carece de mais participação, de mais diálogo, de maior envolvimento e massa crítica, de contar com os melhores aveirenses. Precisamos, nós, os de Aveiro, de nos responsabilizar pelo que nos é comum, pelo que nos é próprio. Olhemos para a nossa casa, olhemos para a nossa família, olhemos para nós mesmos! Agora que olhámos, perguntamos: precisamos mesmo que nos venham governar a nossa casa? Precisamos mesmo que nos venham dirigir a nossa família? Precisamos mesmo que que nos venham tutelar como se fôssemos incapazes? A minha resposta é não! Não, de todo! Não, em absoluto! Há gente em Aveiro capaz, muito capaz, para nos levar em diante e cumprir com os objetivos principais e difíceis. Aumentar taxas e impostos qualquer ignóbil faz. Gastar o cobrado ainda é mais fácil. Para desperdiçar esses cabedais basta um parolo acreditando que está a colar o seu nome à arte mundial. Os nossos propósitos comuns têm de ser mais expressivos do que foram os destes últimos anos. Anos consumidos pelo ranço dos ataques pessoais vis e cobardes. Anos desaproveitados em projetos de recauchutagem urbana mais odiados que apreciados. A sociedade de Aveiro requer saber estar, exige classe, exige saber, exige boa educação e o bom senso aveirense. Os dias sob o céu de Aveiro têm tudo para ser mais bonitos, mais risonhos, com mais e melhor esperança no futuro.
Obrigado estimada Maria José por teres aberto a porta a estas crónicas na AveiroMag, uma casa com muitas janelas descerradas de e para Aveiro.
Os Dias da Rádio
As rádios locais foram grandes instrumentos da consolidação da democracia portuguesa. Milhares de pessoas envolveram-se nas chamadas “rádios piratas” e com isso tiveram voz no espaço público. Pensaram os seus programas, materializaram os seus gostos, tomaram opções, ensinaram e aprenderam, uns com os outros radialistas, conheceram a diversidade de propostas musicais, e outras, fossem artísticas ou de outra índole. Em Aveiro a rádio Oceano, a Rádio Regional, a Rádio Moliceiro, entre outras, foram espaços de liberdade, territórios de autor, do que assumiu a autoridade, e por isso existiram múltiplas autoridades.
A rádio Terranova é a referência radiofónica que resiste e fá-lo o melhor que pode, muitas vezes, na maioria das vezes, muito bem! Tem sido um privilégio o regresso ao encantamento da rádio, ainda para mais, porque A Culpa É das Estrelas é um programa com uma seleção musical extraordinária e a locução do seu autor, o Jorge Cravo, dá alento às narrativas, a sua voz poderosa transforma-as numa força maior.
Nas emissões em que participei, com os textos remetidos, urdiu-se a imaginação no dia, nas águas de Heráclito, as que não passam duas vezes no mesmo local e isso obriga, certamente, a que as bebamos no momento.
Ouvir o Jorge Cravo pronunciar o nome do Francisco Amaral e o da Íntima Fração foi emocionante, como dois campeões olímpicos se abraçassem fraternamente. Dois homens de exemplar querer à rádio, um amor que lhes sobreviverá, pois, a rádio agora eterniza-se nas gravações, nos podcast.
A poesia e a prosa poética têm diferentes solos, diversos céus e distintos horizontes. Nascem algures no emaranhado de rede neuronais do cérebro humano, no interior de um novelo quase tão complexo como o universo. Cada texto é um pedaço de vida, um pedaço de pó estelar convertido em mensagem, é um tanto de dizível a vencer o imobilismo, a derrotar a inércia das coisas e, passe a ironia, a calar o silêncio.
Queria ter mais graciosidade, com uma pincelada trazer mais luz à aguarela, com mais meia dúzia de notas afinar a melodia, queria a omnisciência para encadear as palavras na oração exata e disfrutar e proporcionar algo que saiba aos mais deliciosos ovos-moles de Aveiro ou que tenha o tempero da salicórnia.
Pese a inépcia, o gosto do autor está lá, nos lugares, nas pessoas, também no concreto e no que apenas no sonho é definível. Alguns dos textos vivem de canções, outros de pinturas, há filmes que os inspiram, somos sempre algo do outro, estes textos são a novidade da mistura do ensaio alquímico, mas as partículas preexistem-nos. Um forte abraço ao Jorge Cravo, aos colegas autores e aos ouvintes de A Culpa é das Estrelas, é fabulosa a oportunidade que me concedem.
Os Dias do Teatro
A propósito dos Dias do Teatro.
Uma noite, no CETA, já lá vão uns anos, o encenador convidou toda a gente, a que cirandava junto palco e em que me incluía como membro da direção, para se sentar e pediu uns parágrafos sobre a solidão na cidade.
Não regressei ao ensaio na semana posterior, mas assim começou a bruxulear a narrativa da Radio Cosmik e do Último Beijo. Sem palco nem camarim, estão as personagens retidas numa alfândega, presas na fronteira, nenhum funcionário, nenhum guarda, lhes carimba o passaporte para uma forma diferida de vida. Carlos, Marlene, o Radialista e todos os outros fantasmas aguardam no cárcere que olhos mais benevolentes entendam a particularidade do seu drama e os materializem.
Doure-se a pílula, arriscando afirmar o autor como não se tratando de um néscio. Porque a peça contém um excerto que reporta A Voz Humana de Jean Cocteau, outros trechos respiram Samuel Beckett com o uso reiterado das reticências. Contudo, não iludamos as hostes, comparado com os textos mestres este é um arremedo. Uma tentativa de teatralizar a mundividência racionalista, os conflitos com as cosmogonias religiosas, mas também a luta pelo sono e pelo prazer, e o desejo do avanço técnico que é tão forte quanto o medo que o algoritmo traz. A capacidade tecnológica está a mudar a vida do ser, na expressão realmente ontológica do termo. O que hoje é a corporização, o organismo e as suas células, pode em breve ser uma consciência digital, sem suporte físico. Nós, humanos, somos afinal apenas robôs incipientes, produzidos com defeito, consumidores desenfreados de recursos para funcionarmos e com uma esperança de utilidade vital muito reduzida? Sintonizemos a Rádio Cosmik e saboreemos o gosto do último beijo.
O último rumo desta maré
A estimada Filipa Magalhães deu-nos a honra da apresentação do livro. Sabíamos da sua apetência para o ofício mercê das judiciosas recensões literárias que faz há anos na AveiroMag. Foi neste ninho, a casa virtual da AveiroMag, que a Maria José Santana juntou estes aveirenses. É um prazer enorme a Filipa ter tido a disponibilidade para o sacrifício de escrutinar escritos de viela quando se habita na mansão das redações opulentas. Atitude humilde, benigna, que revela bem que a sua sensibilidade exorbita a dimensão dos opúsculos ou dos volumes densos e, mais que académica ou teorética, é humana, tangível, não funciona pelo algoritmo que escolhe apenas o que é fácil de aceitar, o que é socialmente vistoso ou o que traz contrapartidas financeiras. Nos dias que correm parece ser exigida muita coragem para estar ao lado de uma opinião divergente, de uma proposta, da escolha de uma trincheira ideológica. “Estar ao lado”, não significa, necessariamente, concordar, mas significa legitimar para o debate público o tema. Há lugares em que até o murmúrio mal ouvido, dito a medo, é rapidamente repudiado, sem ser discutido, vexado e desacreditado o autor de forma cruel. Muito obrigado Filipa Magalhães pela beleza que as suas palavras trazem ao mundo, pelas de ontem, pelas de hoje e antecipo, pelas das futuras crónicas.
Foi uma tarde de amizade na Avenida do Dr. Lourenço Peixinho, numa artéria da liberdade portuguesa, mais um bonito dia sob o céu de Aveiro!
*Texto editado do que foi lido na apresentação livro “Os dias sob o céu da Aveiro”. Sábado, 14 de dezembro de 2024, Fundação Eng.º António Pascoal, Aveiro.