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Escutar é um modo de ver, com Carmo Quintela: “Tanto barulho na minha cabeça”

Artes

Numa visita ao Centro Cultural de Ílhavo agarro num folheto que anuncia um conjunto de concertos de Natal em igrejas locais. Um deles é de Carmo Quintela. A página que lhe é dedicada é ocupada com uma curta biografia, o repertório que irá interpretar e uma fotografia em que surge sentada ao lado de uma harpa dedilhando as suas cordas, descalça e com um vestido comprido até aos pés.

Uns dias mais tarde encontramo-nos no café Convívio, em Aveiro. Chega de camisola de gola alta. É dezembro e está frio. Enquanto espero vou verificar: em Helsínquia está pior. A temperatura chegará aos quatro graus negativos naquele dia.

Carmo tem a pele branca, uns olhos castanhos amendoados, um risco perfeito que desliza pelo meio dos seus cabelos longos e pretos. Há uma fragilidade de boneca de porcelana na sua admirável beleza. Mas as suas palavras são rápidas e seguras.

Aos 17 anos voou para longe – Helsínquia fica no extremo norte do continente. Na capital da Finlândia frequenta uma das mais prestigiadas escolas de música do mundo, a Academia Sibelius.

Tem agora 21 anos. Falo com ela nas férias de Natal que veio passar a Aveiro. A conversa foi sobre muitas coisas – mas sobretudo sobre a sua cabeça.

 

Fui verificar: de Aveiro a Helsínquia são 3.200 quilómetros. Para uma miúda de 21 anos, como é estar a 3.200 quilómetros de casa?

A transição não foi nada difícil, até porque nós somos quatro irmãos e sempre fui a mais independente no que toca a querer ir para fora, sempre tive essa visão de querer sair de casa dos pais o mais cedo possível. Sempre soube que queria ir para fora e estar sozinha. Portanto foi super fácil a mudança e muito entusiasmante. Fui para lá ainda com 17 anos. Eu saí do secundário diretamente para fora e os meus amigos do curso de música fizeram cá a licenciatura e agora aos 21 ou 22 é que estão a pensar ir para fora. Sempre foi muito entusiasmante para mim pôr-me à prova.

 

E como foi chegar a um país completamente diferente e afastada de tudo aquilo que conhecias?

O primeiro ano foi uma loucura total. Foi muito desafiante, a altura da covid e da quarentena mexeu muito com a minha saúde mental. A questão de me expor enquanto artista também foi dura. Foi quando percebi: ok, eu quero fazer isto como profissão, mas é uma idade difícil e eu estava muito perdida, não sabia muito bem o que queria fazer dentro da música e ter que estar fechada em casa foi muito duro porque todas as oportunidades que poderia ter foram canceladas. Mesmo as provas de acesso foram online e isso para mim foi mais assustador. Mandei uma gravação para uma data de escolas lá fora sem ir aos sítios, conhecer os professores, o ambiente…

 

E quatro anos já passaram…

As coisas começam a mudar e sinto que quanto mais velha fico mais difícil é estar longe da minha família. Comecei em Setembro o mestrado e foi um semestre muito difícil a nível de saúde mental e agora cada vez mais percebo que preciso de estar cá.

 

Já voltamos a Helsínquia e às questões da saúde mental. Mas vamos dar um salto para trás. Nasceste cá em Aveiro. Como foi a tua infância?

Tive uma infância normal. Fiz a escola na Glória, depois na João Afonso e depois na Mário Sacramento. E sempre andei no Conservatório, a partir dos cinco anos. Foi o primeiro ano em que abriu Harpa. A professora, que foi quem sempre acompanhou o meu percurso, tinha 18 anos e eu fui a sua primeira aluna. Sempre tivemos uma relação muito informal e começar com uma rapariga tão nova teve impacto em mim, foi muito bom. Mas quando me perguntam como é que comecei, eu não me lembro. As minhas irmãs andavam no Conservatório, há sempre essa influência…

 

Deixa-me perguntar por ignorância: é normal alguém entrar para o Conservatório aos cinco anos ou foste muito precoce?

Hoje em dia penso que já não. Eu fui a primeira aluna e lembro-me de algumas colegas da minha turma irem para harpa por serem minhas amigas, com 7 ou 8 anos. Hoje dou aulas e vejo miúdos que começam só aos 9 ou aos 10 e tenho colegas que só começaram aos 12.

 

Alguma vez pensaste em trocar a harpa por outro instrumento?

Nunca pensei duas vezes. Não me lembro como isto aconteceu mas sempre soube que era aquilo. Tive uma fase na adolescência em que odiava aquilo mas sempre soube que era aquilo que queria fazer.

 

Odiavas o quê?

Tive uma fase, aos 15 anos, em que odiava o Conservatório e estava fartinha daquilo e só queria os meus amigos e passear. Mas depois passou-me.

 

Sempre foste boa aluna?

Sempre fui boa aluna mas sempre estive muito mais inclinada para a música, nada me interessava na escola.

 

Nunca quiseste ser médica ou engenheira ou professora?

Nunca. No Conservatório chegou uma altura em que tinha História das Artes, Acústica e Organologia, Formação Musical, e eu era mesmo muito boa aluna e sempre me interessou muito. Na escola era muito aluada porque não tinha interesse pelas disciplinas.

 

Até que no fim do secundário vais para a Academia Sibelius. Como foi isso?

No Conservatório apresentam-nos o leque de quais são as melhores escolas do mundo e a Sibeluis é um nome muito grande. Sempre ouvi falar na Sibelius pelas minhas professoras de harpa e sou uma pessoa muito curiosa… Fiquei um bocadinho obcecada com a ideia da Finlândia, lembro-me de ver vídeos no YouTube… Interessava-me muito… O Inverno duro, a neve, as pessoas frias… Também sabia que a escola era rígida e eu sou uma pessoa que trabalha muito melhor sob pressão. Preciso de uma professora que seja má, bruta, honesta… Não consigo funcionar com paninhos quentes.

 

A Sibelius foi a tua primeira opção?

Foi. Mas foi a única escola em que eu achava que não ia ter hipóteses de entrar. Concorri para cinco escolas e pensei que nunca conseguiria entrar na Sibelius.

 

És uma mulher com boa autoestima ou desconfias de ti?

Tenho boa autoestima mas em relação à harpa espero sempre o pior. Sei que sou boa mas aprendi a manter as expectativas sempre baixas. Consigo ser confiante no palco – e como fiz dança a minha vida toda aprendi a estar no palco, é muito fácil para mim estar em palco – mas penso sempre no pior.

 

Como foi a tua experiência na dança?

Dancei ballet na Escola de Bailado de Aveiro.

 

Era fácil conciliar todas essas atividades?

Não era nada fácil, até porque tive uma fase em que achava que queria seguir dança. Eram as minhas paixões. Mas o ballet chega a um nível de exigência em que uma adolescente tem de fazer escolhas e eu cheguei a um ponto em que não conseguia conciliar concertos e ensaios da música com ensaios e espetáculos da dança. Desisti da dança no 11º ano, quando comecei a ter crises de ansiedade muito más porque não conseguia conciliar tudo.

 

Chegaste a vacilar entre a música e a dança?

Sim.

 

A balança pendeu para a música. Porquê?

Houve uma fase em que odiava o Conservatório e queria alguma coisa diferente. Nunca disse isto a ninguém mas até ponderei seguir desporto. Queria ver-me livre do Conservatório. Mas sempre soube que era aquilo que eu queria.

 

Em Aveiro já participavas em concertos…

Sim. Com orquestras profissionais. Comecei a colaborar com a Filarmonia das Beiras desde muito cedo, desde os meus 15 anos, com a Orquestra Nacional de Jovens, que foi a orquestra que me fez querer seguir música e hoje em dia sou professora nessa orquestra. Fui participando em algumas orquestras profissionais e académicas, fiz estágios de Verão de orquestras juvenis…

 

Pareces-me muito precoce em muita coisa. Sentes-te uma espécie de prodígio?

Não. Não gosto de dizer isso. Mas não tenho vergonha nenhuma em admitir que sou boa e que desde muito cedo apostaram em mim. A Filarmonia das Beiras, por exemplo, sempre me chamou de volta… Lembro-me de uma vez, tinha 16 anos, em que fomos tocar ao casino da Póvoa de Varzim e não me queriam deixar entrar porque eu era menor…

 

Quiseste entrar para a Sibelius mas não basta querer. Como conseguiste entrar?

Candidatei-me. Mandei uma data de vídeos e fiz testes. E fui aceite.

 

Qual foi a tua reação quando soubeste?

Lembro-me de receber um email e ficar completamente doida, porque genuinamente nunca pensei em conseguir entrar. Fiz as provas à espera de um milagre. Eles só aceitam uma pessoa, pelo menos dentro da classe de harpa. Foi muito difícil de acreditar e de lidar. Nunca fui uma pessoa tímida, sempre fui a palhaça dos meus amigos e na família, mas quando cheguei automaticamente fechei-me. Passar de uma cidade onde era a melhor para um país onde era só mais uma foi difícil. Em três anos de licenciatura tive de criar toda uma identidade e mostrar porque tinha sido aceite. Foi muito difícil emocionalmente.

 

Alguma vez te arrependeste da escolha que fizeste?

Nunca.

 

Mas nunca tiveste dúvidas?

Dúvidas não. Mas a licenciatura foi muito difícil e ainda comecei a dar aulas… E cheguei a um ponto em que me lembro de dizer aos meus pais “não consigo mais”. Não tinha uma vida social… Estudava seis ou sete horas de harpa por dia e depois fazia noitadas na Sibelius a estudar… Cheguei a um ponto em que estava esgotada. Mas nunca quis desistir.

 

Já falaste várias vezes na saúde mental. Foi um problema para o qual despertaste cedo ou foste ignorando?

Comecei a ser acompanhada só agora, sempre ignorei. Sempre sofri muito mas nunca pedi ajuda, sempre deixei andar. Tinha crises de ansiedade por não conseguir conciliar as coisas… Desmaiava por falta de ar, ataques muito físicos… Foi muito difícil conseguir sair desta bolha porque tinha vergonha de admitir que não estava bem. Os meus pais disseram que eu não estava bem e eu própria admiti que precisava de ajuda. E disse-o às pessoas da Sibelius, que precisava de parar. E vim mais cedo para Portugal, em Novembro.

 

Todos precisamos de uma válvula de escape…

Foi muito preciso ser acompanhada e - não tenho problema nenhum em dizer – tomar medicação para estar bem e feliz. Quando vim parecia um zombie, não conseguia dormir, não conseguia fazer nada. Ser artista é uma profissão que não é nada fácil e eu sinto que há pessoas da geração dos meus avós que não percebem o porquê de eu ter seguido música, e isso deixa-me triste. A minha avó comenta muito “então o que vais fazer depois disso, quando é que vais arranjar um trabalho a sério?” Mas isto não é uma brincadeira, exige muita força física e mental.

 

A saúde mental ainda é um tabu?

Sim.

 

E agora já consegues respirar melhor?

Tem sido um mês muito descansado, até porque parei um bocadinho na faculdade, não tenho grandes obrigações, estou a recuperar… Também porque tive uma lesão um bocadinho grave num ombro e estou a fazer fisioterapia. Foi muita coisa ao mesmo tempo.

 

Uma lesão provocada por tocares harpa?

Sim. Está a ser um mês de aceitação do meu corpo a pedir descanso, o que eu ignorei durante tanto tempo.

 

E teres baixado o ritmo e permitires-te respirar foi-te estranho?

Foi um bocadinho difícil ao início não ter nada para fazer, porque preciso de ter coisas para fazer. Mas depois entro num ciclo do qual não consigo sair.

 

Tocar harpa é fisicamente desgastante?

É. Muito. Tenho um problema grave num ombro. Cada vez mais tenho de trabalhar reportório longo e saio a suar, parece que fui dar uma corrida, fico exausta. As pessoas não têm noção do quão exigente é, mesmo fisicamente.

 

Talvez as pessoas tenham uma ideia romantizada do que é ser artista… Esquecem todo o trabalho, a disciplina…

Exacto. Nós fazemos algum dinheiro mas se não cuidamos de nós vamos ter de o gastar em psicólogos e fisioterapeutas…

 

Eu andei no piano quando era miúdo mas baldava-me às aulas. Em adulto voltei a ter aulas mas não treinava o suficiente em casa. O meu sonho era tocar Rachmaninov mas não sei tocar nem o Parabéns a Você. Isto para te perguntar: para ser um bom artista é preciso muita disciplina e muito esforço, não é?

Sim. Eu lembro-me de ser pequenina e de nas horas de almoço da escola ir estudar harpa para o Conservatório, com a minha mãe, que não percebe nada de harpa, a ajudar-me. Sempre fui muito disciplinada – com o resto não, mas com a harpa sim.

 

Agora que ganhaste a capacidade de sair da tal bolha em que estavas, o que fazes além da harpa?

Agora que estou de férias tenho-me concentrado muito na actividade física. Sempre fui muito activa mas quando fui para fora descartei o desporto mas arrependo-me, porque me ajuda muito na questão da saúde mental. Na Finlândia faço ginásio mas é sempre em SOS, quando estou mesmo mal. Então aqui tenho ido a um ginásio todos os dias, faz-me bem à cabeça e ajuda-me a descansar à noite, porque desenvolvi problemas de sono. Tenho estado com amigos, que é uma coisa que eu me esqueci muito. Quando fui estudar para fora achei que deixá-los para trás me ia ajudar a focar. Estar com eles tem-me ajudado muito a encontrar a pessoa que eu era, antes de entrar na bolha. E estar com a família também tem ajudado muito. Mas também tenho estado muito sozinha, mas não é sozinha como em Helsínquia. É dentro dos meus pensamentos, tenho tempo para pensar, para estar comigo, para ler… Tem sido muito bom.

 

Nestes anos privaste-te daquelas coisas que as pessoas fazem, como ir ao cinema, jantar fora, sair com os amigos…?

Sim. Lá fora criei uma personalidade completamente nova em que sou totalmente anti-social. Eu não era assim. E quando estou cá não sou assim.

 

Aqui fazias essas coisas?

Fazia. Normalíssimo. Quando cheguei lá fora, por querer ser a melhor, tornei-me anti-social. Não tive experiência de universidade. Não me arrependo – talvez agora um bocadinho –, porque não tinha interesse em ter essa experiência. Estava tão focada…

 

Obcecada, se calhar…

Sim, nem era focada, era obcecada, e não conseguia sair desse meu mundo…

 

Mas percebeste que isso se calhar era um pouco doentio…

Totalmente. Não tinha vida. A única coisa que eu faço lá é babysitting numa família em que ela é finlandesa e ele é português, que é a coisa que eu mais gosto, porque eu adoro miúdos. Esta família acolheu-me e trata-me como filha mais velha e estou com ela todos os dias. E é também uma forma de fazer dinheiro, porque eu preciso dessa fonte de rendimento. São as únicas horas do dia em que não penso na música. Fora isso, a minha cabeça tem barulho, com ou sem phones, está sempre música na minha cabeça. Deixei de conseguir dormir por causa disso. Não conseguia parar de pensar em música e de estudar na minha cabeça, era assustador.

 

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Como é a vida em Helsínquia? Vives onde?

Num apartamento privado…

 

As coisas são muito diferentes? A maneira como as pessoas se relacionam, por exemplo?

Sim, é muito diferente, e isso também não me ajudou muito. Os finlandeses são pessoas muito frias. Aqui em Portugal falamos muito e estamos em grupo e temos o conceito de ir tomar café, ir para a esplanada… Lá isso não existe. Só se veem pessoas individuais na rua, não se vêem grupos. Mesmo os miúdos… A adolescência é muito individual… Em Aveiro, saía das aulas e ia com os meus amigos para a esplanada… Eles vão buscar um café e vão à sua vida… São pessoa frias e que querem estar sozinhas. Um dia, no meu primeiro ano, a cantina da faculdade, que é um espaço relativamente grande, estava cheia e não havia lugar para eu me sentar sozinha numa mesa e então tive de me sentar à frente de um rapaz finlandês. E ele sentiu-se tão perturbado que pegou nas coisas e mudou de sítio. Nos transportes públicos há placas a dizer “silêncio por favor” e não se ouve barulho. O metro é o metro mais silencioso onde eu já andei, as pessoas não conversam. É uma realidade completamente oposta e isso também não me ajudou e fez com que me fechasse mais.

 

Aprendeste a falar finlandês?

Sim. Mas não falo fluentemente. Na faculdade é obrigatório passar à cadeira. Foi uma luta muito difícil, chumbei uma data de vezes até conseguir passar.

 

A língua franca, digamos assim, é o inglês na Sibelius?

O curso é em inglês. Mas quando faço projectos com orquestras profissionais os ensaios são dados em finlandês, mas como sei os números e as coisas básicas eu consigo acompanhar. Mas apesar de serem pessoas frias, sinto que com pessoas novas internacionais são muito cuidadosos – se nalgum ensaio precisarem de dizer alguma coisa diretamente para mim, falam em inglês.

 

Disseste que também dás aulas. Gostas de ser professora?

Adoro. Antes de ir para lá já tinha dado aulas na Orquestra Nacional de Jovens, foi uma excitação. Sempre dei aulas individuais a alguns alunos cá de Aveiro mas muito informais e de repente era professora e tinha uma classe. Foi uma experiência muito interessante trabalhar com pessoas mais velhas que eu, que me respeitavam enquanto professora. Lá fora comecei a dar aulas logo no primeiro ano, com uma aluna de 6 anos, finlandesa e que não falava inglês, e eu mal falo finlandês. Foi uma experiência muito difícil. Dei aulas de harpa e de formação musical, a miúda não sabia nada de música, e eu tinha uma pessoa a avaliar-me. Acabou por ser muito engraçado, eu dava as aulas num finlandês meio básico, e ela tentava falar inglês, era muito querida. Estive com ela apenas um ano mas o percurso dela foi incrível. No final desse ano ela teve de tocar uma peça que aprendeu… Ela quis continuar e agora está numa escola de música e saber que eu fui a primeira pessoa para lhe dar motivação é a melhor sensação.

 

A harpa não é dos instrumentos mais procurados pelos alunos, pois não?

Não. Até porque é um instrumento relativamente caro…

 

Quanto é que pode custar uma harpa? Centenas de euros, certamente…

Ah ah ah Uma harpa boa eu diria uns 24 mil euros.

 

Se pudesse enfiava-me num buraco… Isso são dois carros…

Sim sim sim…

 

A música é já a tua vida, apesar de teres só 21 anos. O que te imaginas a fazer no futuro? Pertencer aos quadros de uma orquestra?

É sempre um tema um bocadinho difícil porque o meu sonho desde muito cedo é fazer musicoterapia. Começou no meu nono ano, tive de fazer um recital final antes de ir para o secundário. Eu tinha de dar um concerto de harpa e sabia que não queria fazer só mais um concerto. Lembro-me de ser pequenina e de ver pessoas que vivem na rua e começar a chorar. Sempre tive uma fixação por estas pessoas e com pessoas com necessidades especiais e com idosos. Sempre mexeu muito comigo.

 

Tens uma sensibilidade apurada…

Sim. Nessa altura no ballet tínhamos feito um projecto de dança com a CERCI de Águeda, em que miúdos com necessidades especiais faziam música e nós íamos dançar. Eu fiquei apaixonada. E entretanto sabia que tinha de fazer um concerto e queria fazer alguma coisa diferente, e propus um recital diferente e eles aceitaram. Decidi fazer um projecto com três associações: a CERCI Águeda, a Casa do Professor e o bairro de Santiago. Os meus pais ajudaram-me e todos tiveram muito interesse em fazer este projecto. O concerto acabaram por ser três mas não foram simples concertos, queria que o público interagisse comigo, através de painéis e canetas que eu pus no chão. Depois aproveitei esse material para o Projecto de Aptidão Artística, uma tese que temos de fazer para terminar o secundário no Conservatório. Foi incrível ver o processo criativo deles. Lembro-me de um senhor, o senhor Mário, que já faleceu, me escrever um texto muito bonito, que mexeu muito comigo. Quando ele faleceu eu já estava em Helsínquia e ligaram-me porque encontraram nas coisas dele um bilhete para mim a agradecer o concerto. Para mim, esta é a minha maior felicidade.

 

Gostavas de pertencer a uma orquestra?

Estou nessa descoberta. Quando fui para Helsínquia tinha relativamente pouca experiência… Harpas em orquestra é muito pouco preciso… Quando fui para lá fui cheia de medo, nunca tinha tido orquestra como cadeira, e detestava. Nunca passei nenhuma vergonha mas tinha medo. Mas comecei a trabalhar com orquestras profissionais e fui desenvolvendo um gosto… Tenho uma relação de amor-ódio com orquestra, tando adoro como odeio. Com reportório solo posso escolher o que posso tocar, na orquestra não é assim. Na orquestra tenho por exemplo de interpretar música contemporânea mas não sou boa intérprete…

 

Quais são os teus compositores preferidos?

Diria que Ravel, Mahler, Debussy e alguns compositores de harpa. Para orquestra, depende muito. Se tiver de trabalhar numa orquestra, o meu sonho é trabalhar numa casa de ópera, para poder tocar bailados, porque eu cresci muito a fazer bailados – o Quebra-Nozes, a Bela Adormecida…

 

Sonhas em grande, com a Ópera de Paris, por exemplo?

Não tenho sonhos em grande. O gosto de tocar numa orquestra vem muito mais do sítio e das pessoas. Demorei muito a perceber que primeiro preciso estar bem comigo mesma para conseguir gostar de estar num sítio. Já fui à Suécia tocar com uma orquestra que é muito boa mas eu estava tão mal que nem consegui aproveitar o momento.

 

Além de Ravel, Mahler e desse reportório, o que é que ouves mais? De que música gostas?

Eu não ouço música clássica no meu dia-a-dia, evito ao máximo. Não me faz bem, é tóxico para a minha cabeça. Se estiver no carro com os meus pais e estiver na Antena 2 eu peço para desligarem o rádio, porque a minha cabeça nunca pára de pensar.

 

Então ouves o quê? Lana del Rey, Rolling Stones…

Ouço tudo, nunca fui nada selectiva com música. Ouço muito jazz mas também evito porque também entra muito dentro do meu trabalho. A minha banda preferida é Jungle e gosto muito de música dos anos 80, porque cresci muito com a música do meu pai. Sou um bocadinho infoexcluída da música pop de hoje em dia – se estiver a dar uma música na rádio não faço ideia de quem é essa pessoa.

 

Paraste nos anos 80…

Na verdade tento nem ouvir música porque há sempre tanto barulho na minha cabeça… Mas ouço muitos podcasts, muito mais do que música.

 

É já final da manhã quando desligo o gravador. Vestimos os casacos, saímos do Convívio e despedimo-nos. Penso no que ela disse sobre o barulho dentro das nossas cabeças – todos o temos, talvez; a diferença é a forma como cada um consegue regular o botãozinho do volume. Ouço Jungle nesse mesmo dia. “Keep moving” é o título de uma das canções. No fundo, é isso que todos nós fazemos.

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