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“Escutar é um modo de ver” com Granada: “Então sou punk, meu”

Artes

Quando chego ao café Convívio, Granada está sentado ao fundo da sala de costas para a porta. Sento-me à sua frente. Diante de mim tenho um homem de bigode, grandes patilhas grisalhas e um boné na cabeça com o desenho de uma malagueta por cima da pala. A empregada pousa um galão e uma torrada na mesa e pergunta, dirigindo-se a mim: “E o menino quer o quê?” Granada é a alcunha de João Paulo Ribeiro. Formou bandas, organizou concertos, passou música na rádio, abriu lojas de discos. É uma figura mítica de uma certa cultura alternativa de Aveiro, embora ele diga que não. Conversamos durante duas horas – sobre serralharia, sobre a tropa, sobre bandas como Escroto, Marx e os Coelhos do Pântano ou Agricultor Debaixo do Tractor. O discurso de Granada é como uma torrente impetuosa. Este homem nascido em 1968 fala muito, dispersa-se, responde ao que não pergunto. Tento ter algum controlo sobre a conversa, mas ela vai para onde ele a leva.

 

Se alguém te chamar de João, tu dás pelo nome?

Depende de quem for. Depende da voz. Há quem me chame João, há quem me chame Paulo... João era mais no trabalho. A minha alcunha Granada foi só depois da tropa. Eu tinha 17 anos, ou 18 quando fui à inspeção. Na altura já vivia no Caião, e fui conhecer lá a horda dos metaleiros, que eram todos aqui de Aveiro. Onde é a Polícia, ao pé do Paga Pouco, havia lá casas. Esses foram os primeiros a ir… O primeiro bairro a ser construído acho que foi o Caião, e o Griné também, e depois Santiago. E então na altura houve um acordo, os meus pais estavam lá há 20 anos.

 

[Granada refere-se a moradores de Aveiro que foram realojados nos bairros sociais]

 

Os teus pais são de Aveiro?

A minha mãe é aqui da zona, de Mamodeiro, o meu pai veio de Viseu. Veio para o Marabuto. A minha mãe foi para as terras servir. Andava a sulfatar, a cavar… Foi servir para os Paula Dias. A minha mãe sabia fazer já algumas coisas, passar a ferro e tal. E os Paula Dias não queriam criados burros. Tratavam bem as pessoas. Tinham uma equipa de futebol, isto nos anos 70. O Cais da Fonte Nova era uma cena abandonada, era uma quinta, só uma parte é que era cultivada. Tinha riachos, o campo de futebol… Treinava lá o Beira Mar e jogavam lá os juniores. A Campos também tinha lá uma fábrica, o resto era a ria e do outro lado havia as oficinas do Bandarra, olarias… Havia mais actividade artística na pintura do que agora.

 

[Marabuto e Paula Dias eram duas empresas de Aveiro]

 

Ainda és do tempo das olarias e das fábricas?

Sou. Ia para lá brincar…

 

Voltando ao teu nome. Como é que ganhaste a alcunha Granada?

Foi na tropa. Fui para a tropa em 89, para Santa Margarida. Atenção que eu sou o tempo da tropa obrigatória. Eu até curtia ir para os fuzileiros mas não sei nadar. Sou de Aveiro, nunca fui a São Jacinto e não sei nadar. Aliás: fui a São Jacinto uma vez, ao Festival das Dunas, mas não contou porque não sei se estava em São Jacinto, em Tróia ou em Nova Iorque.

 

Voltando à alcunha…

Eu tinha uma banda, que eram os Escroto, nos anos 80, que acabou nos anos 90. E os Marx e os Coelhos do Pântano, que eram os mesmos, só mudavam os vocalistas.

 

São nomes originais…

Eram as bandas que havia na altura. Havia mais, mas estou a falar das minhas. Havia os Agricultor Debaixo do Tractor, do Ivar Corceiro, e outras.

 

Qual era o vosso som?

Hard core. Os Escroto foram a banda mais extrema de Aveiro. Só tocámos uma vez fora da Aveiro, em Ílhavo. A gente só tocava nos ensaios.

 

Que eram onde?

Oh pá, era em frente ao Zig Zag. Era o Sindicato dos Professores do Norte e a mãe do Barata, que era um deles, era lá diretora. Aquilo tinha um sótão e ele pediu... E tínhamos acesso a uma sala lá em baixo. Nós éramos uma cena fora da caixa, e ia lá muita gente. Os nossos concertos eram para umas 70 pessoas que iam para lá.

 

Eram um bando de miúdos rebeldes?

A gente telefonava para o Vaticano, para a presidência dos Estados Unidos, meu... Depois começaram a pôr cadeados nos telefones. Fazíamos isso por brincadeira, por gozo. Uma vez ligámos para o Vaticano e dissemos que éramos Satanás. O gajo desligou logo…

 

Ainda não me disseste como ganhaste a alcunha…

A primeira vez que lanças uma granada, tu assustas-te… A técnica é: quando alguém grita “granada”, as pessoas abaixam-se todas, mandam-se todas para o chão. E eu mandava-me para o chão. E começaram-me a chamar Granada. E ficou.

 

Como era Aveiro quando eras mais novo?

Depois do Ramona Aveiro não tinha nada. Ias para o Rossio, levavas uma guitarra acústica, umas cervejas, ficavas lá até às quatro… Ou então ias para o bingo, que era também até às quatro.

 

Estudaste aqui em Aveiro?

Estudei em Aveiro, mas estudei pouco, porque fui trabalhar muito cedo. Para os Paula Dias, aos 13, 14.

 

O que fazias lá?

Era serralheiro civil. Eu queria ir ao cinema e tal… Sou apaixonado por cinema… Queria que a minha mãe me desse mais dinheirito mas eles não podiam. Então a minha mãe disse “olha, vais trabalhar nas férias e o dinheiro é para ti”. Enquanto estudei nunca sofri bullying, mas quando fui trabalhar… Eram praxes estúpidas…

 

Se calhar todas as praxes são estúpidas…

Não. Uma praxe até pode ser cívica. Já vi aqui praxes que era apanhar beatas. Na tropa havia a cama à espanhola...

 

Sofreste isso?

Sofri sofri… Fui para uma tropa violentíssima… Eu era atirador, fui para sniper. Fui para uma tropa que era a Cavalaria, era especial, aquilo era porrada velha. Andei dois anos na tropa, estás a perceber?

 

Então começaste a trabalhar cedo…

Com 13, nas férias. Dantes o trabalho era uma arte para o resto da vida. Eu, como era meio atravessado, adaptei-me mais ou menos bem. Já conhecia o meio, nasci naquele meio.

 

Tu trabalhavas e em paralelo tinhas o gosto pela música, cinema...

Vamos um bocadinho mais atrás. Tens tempo?

 

Tenho algum.

Os meus pais já viviam lá. O meu pai vivia em Sá, conheceu a minha mãe e foi para os Paula Dias, saiu do Marabuto. Foi trabalhar como servente. O meu pai viveu para o trabalho. Terra e fábrica. A minha mãe já estava lá. Fazia limpezas. Eles não ligavam muito à cultura.

 

Como é que tu ganhaste esse gosto?

Cinema. Tudo no Avenida. Os assistentes de sala naquele tempo eram pessoas trabalhadoras, não é como agora, que têm que ser meninas bonitas, rapazes novos. Eram cotas. Trabalhavam na fábrica e à noite e aos fins de semana iam para lá, às sessões da tarde e da noite, no Avenida e no Aveirense, mas principalmente no Avenida, para fazer um extra. Era tudo Paula Dias. Só uma senhora, que às vezes fazia bilheteira, é que não trabalhava no Paula Dias.

 

Lembras-te do primeiro filme que viste?

Lembro-me, tinha quatro anos. Mas não sei que filme foi. Só mais tarde é que soube que filme foi. Os “Thunder Birds”. A minha mãe meteu-me na catequese aos quatro anos. Uma vez, na Páscoa, estávamos a vir de um ensaio, os anjinhos… Vinha a pé da Vera Cruz, passámos ali ao pé do Avenida e eu comecei a ver muitos putos. O meu pai perguntou “queres ir?” e eu “quero, então não quero”. Mas não sabia o que era. O meu pai deixou-me lá e a partir daí… A partir dos 7, 8 anos já via “Shinning”… Depois via aquelas merdas gore… À terça era cinema de terror e à quinta era kung fu, ou ao contrário. O Avenida não exibia filmes porno, dizia mesmo lá.

 

E a música?

Eu já gostava de música. É pá, mas aos 15 anos apanhas no fundo do teu quintal com um festival de três dias… Foi em 85, o Agitarte, nos pavilhões todos, cá fora… Eram os Cagalhões, Radar Kadafi, GNR…

 

[O Agitarte foi um festival de música que decorreu em Aveiro em 1985 com bandas como Pop dell´ Arte, Radar Kadafi, Cagalhões, Bastardos do Cardial, Croixsant, Rádio Macau ou Mler If Dada. Os Pop Dell’Arte, por exemplo, fizeram aqui a sua primeira actuação fora de Lisboa]

 

Os Cagalhões?

Os Cagalhões de Aveiro, nunca ouviste falar? Eh pá, o punk morreu aqui.

 

Lembra-se de quem eram?

Lembro-me, sou amigo deles todos. O Biafra, por exemplo - sportinguista ferrenho e professor de Matemática Aplicada… Era malta do Ramona. O pessoal começou a ir para a universidade, já não estava lá todos os dias e eles fazem a primeira remodelação e começam a apostar nos hambúrgueres mesmo. O Ramona era o Facebook da altura. Toda a gente que tinha música, escrevia letras, fazia esculturas… Toda a gente das artes ia ao Ramona. Betos, punks e o carago…

 

Era um ponto de encontro.

Era um ponto de encontro mesmo. E era o escritório de muita coisa.

 

Lembras-te do Ramona antes dos hambúrgueres…

Era um salão de máquinas. Era como o Maravilhas. Tinha um cafezinho pequenino e o resto era snookers e máquinas.

 

Ainda hoje lá vais?

Sou amigo do Fred e do Américo. Vou lá de vez em quando. Agora é um restaurante. A gente ia para lá fazer sala. Eu ia para lá sem dinheiro.

 

Do que é que te lembras do Agitarte?

Pop del Arte, Mler Ife Dada, tudo… Foi na Fonte Nova, no recinto das feiras. Veio muita gente do Porto. Quer dizer, não veio muita gente que aquilo era caro, 1500 escudos, um festival de três dias. Foi o primeiro festival urbano do país e se calhar da Europa. E há filmagens. O gajo que organizou fazia muitos ciclos de cinema experimental alemão no liceu, havia lá concertos também. O liceu, no final de cada período, tinha uma festa aberta ao público. Nos anos 70. Depois vieram os anos 80 quando tudo explodiu.

 

E Aveiro estava preparado para isso?

O Francis, um rapaz de Ílhavo, quando vinha ao Oita provocava acidentes, parava tudo. Ele era gótico, vinha todo como o gajo dos Cult, cheio de pulseiras, crista, namoradas góticas… Aquilo era muito diferente para Aveiro. Mas ias ao Porto e já era normal.

 

Esse festival despertou-te para a música?

A mim e a muita gente. Quando saio da escola primária, a maior parte vem estudar para a João Afonso e eu vou para Esgueira, outro tipo de cultura e de pessoas. Correu tudo bem mas venho para aqui para o liceu já todo marado. Comecei a experimentar umas coisas... Aqui na número um, que era onde estudavam os Cagalhões, era porrada e violência. Os Cagalhões eram famosos por mandarem cachaços aos betos, eles é que mandavam na escola. Havia concertos, havia rádios… Havia mais atividade. Agora há mais dinheiro e há mais estupidez.

 

Fazias a tua vida toda em Aveiro?

Tu para ires para a Costa Nova ou para a Barra demoravas uma hora e tal, e pagavas três escudos. Tu com três escudos em meia hora estavas em Espinho, até menos, com uma piscina lá ao lado. A minha mãe gostava muito da Barra, do farol. Mas íamos a Espinho de comboio, era mais rápido. E aí com 14 anos já ia sozinho para Espinho, e depois para o Porto. Os meus pais nunca me controlaram.

 

E o que ias fazer para o Porto?

Ver concertos. Conhecia os punks… Aqui em Aveiro não tínhamos nada.

 

Como é que conheceste essa malta?

Foi aqui. Mas também comecei a conhecer muita gente em Espinho e fui muito cedo para o Porto. A partir dos 16 anos comecei a fazer diretas. Nunca menti aos meus pais e eles também nunca me chatearam muito a cabeça. Por dinheiro, sim, mas no resto não.

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Também fizeste rádio. Onde começaste?

Na Oceano. Começou tudo aí. Foi com o Rui Pedro e com o Marabuto, em 86. Depois em 87 formei a editora, a Martelo Pneumático. Era uma distribuidora. Eu ia para o Porto e trazia muitas fanzines.

 

Em Aveiro não havia essa oferta?

Aveiro não tinha nada. Havia para aí cinco ou seis bandas em Aveiro, e muitas delas eram de covers, como os Jambalaia. Bandas com originais só a partir dos finais de 80, início dos 90 é que começam a aparecer, bandas mesmo a sério. Até lá havia o Agricultor, havíamos nós… Mas eram todos projetos pequenitos. Nós durante cinco anos fizemos sete músicas. A gente queria era passar tempo. A primeira banda dos anos 80, a sério, que conseguiu alguma coisa fora de Aveiro foram os Inquisição. E foi das primeiras bandas do país a fazer uma tournée europeia à pala deles. Na Bélgica fizeram a primeira parte dos Off Spring. Aveiro sempre teve bandas punk, mas era sempre uma ou duas, nunca teve um circuito.

 

És muito crítico de Aveiro…

Aveiro não tem cultura nenhuma. É uma cultura de parolos, isto aqui é luzinhas para o Natal… Eu não sou contra, gosto muito da festa do São Gonçalinho e de luzinhas no Natal, mas não chega. Fomos capital nacional, mas o que é que resta, o que ficou para a cidade, para os artistas?

 

O que falta à cidade?

O que Aveiro precisa é de sítios, porque as pessoas depois aparecem. Agora se há sítios e limitam aquilo... “Ai queres fazer uma pintura, tens que fazer a candidatura...” Eu trazia aqui uma banda com o guitarrista dos Smiths… “Ah, só para o ano”. Para o ano? É agora, carago. O Avenida fez mais serviço público num ano e meio que uma década no Aveirense. Podes escrever.

 

[Refere-se ao Avenida Café Concerto, entretanto encerrado]

 

E além do Avenida, que outros espaços destacas?

Cultura mais alternativa tens a universidade. E é um grupo de teatro que está a fazer cultura, o GrETUA.

 

Tens mau feitio, não tens?

Ai às vezes tenho, quando é preciso. Então sou punk, meu. Sou frustrado e implicativo. Porque vejo pessoas completamente incompetentes no poder. Mas não é só aqui em Aveiro. Enquanto a cultura estiver na mão camarária, esquece. Portugal é uma puta vaidosa.

 

Como te situas politicamente?

Eu era de esquerda. E fui anarquista. Agora nem sei se sou de esquerda se sou de direita.

 

Voltando aos Escroto. Tu eras o vocalista. Também tocavas algum instrumento?

Na altura não. Uma vez comecei aos berros e disseram “tu podias ser vocalista” e eu “está bem, vamos experimentar”. Eu primeiro fui para vocalistas dos Marx, eles andavam à procura de uma pessoa que cantasse bem em português. Mas cantar em português aquela melodia tipo Joy Divison não era comigo. Os Marx tiveram muitos vocalistas, até o baterista… Todos os elementos dos Marx tentaram a voz, até o irmão de um deles. O único vocalista que teve, passado 15 ou 20 anos, foi o Sam, que realmente é um bom vocalista.

 

Vocês tocavam originais?

Tínhamos duas versões, o resto era tudo originais.

 

Eras tu que compunhas?

Éramos todos. Eu escrevia letras. Mas já nem me lembro…

 

Vocês têm cassetes ou assim…

Nada. Anos 80, amigo. Nós tínhamos bom material mas não tínhamos bom material para gravar. Os Marx tocaram mais que nós, mais a sério. Tocaram nos pavilhões das feiras, tocaram com os Mãos Morta, acho que tocaram fora de Aveiro. Os Agricultores também foram a Guimarães… Nós éramos tão caóticos… Tocámos nesse festival em Ílhavo porque a primeira banda desistiu - o vocalista estava muito bêbado e nós estávamos lá…

 

Alguma vez te envolveste em cenas de violência?

Nunca andei à porrada na vida. Mas houve alguns episódios com a polícia.

 

Os Escroto ainda duraram algum tempo?

Os Escroto era uma banda que tocava no intervalo dos Marx. Qual era o mal das duas bandas? Alegria a mais. Eu ainda cheguei a dar uns toques na guitarra, nas teclas, ainda dou. Neste momento estou a fazer um álbum techno... Já não trabalho mais aqui para Aveiro, nem me interessa… Acabei agora com a editora e com a loja. Fiquei um bocado desiludido e cansado. Eh pá, tenho 57 anos, sempre na luta… E isto desgasta.

 

Começaste muito cedo a sair de Aveiro, a procurar fora o que não encontravas aqui…

Ainda nos anos 80 começo a ir ao Porto e começo a conhecer pessoas completamente fora. E tinha o programa de rádio…

 

Como é que se chamava?

O primeiro chamava-se Celulóide, no Oceano. O Rui Pedro disse “e se a gente fizesse um programa de rádio?”. Nessa noite fomos todos para o Oceano, e o gajo apresentou-nos o Marabuto, que era uma figura aqui de Aveiro, e ele disse “está bem”. A gente não tinha experiência nenhuma. Naquele tempo não fazias tudo, como agora. Como eu tinha muitos discos e o Rui Pedro também tinha interesse, começámos a fazer o programa.

 

Compravas muitos discos?

Comprava.

 

Lembras-te do primeiro que compraste?

Não. É impossível. Tive perto de dez mil discos. CD ainda tenho muitos. Eu ganhava dinheiro, é por isso que não fui estudar.

 

Como é que ganhavas a vida?

Trabalhava no Paula Dias. Trabalhei lá até 2004, quando faliu. Sempre como serralheiro. Era a terceira fundição melhor da Europa. Entretanto a Oceano acabou e fui para a Ria, nos anos 90. Fui expulso. Diziam “os gajos só dizem asneiras com o microfone aberto”.

 

Que música passavam nos vossos programas?

Música independente. Quem trabalha comigo nunca faz um programa só de metal, acho isso muito redutor. No Ria eram duas horas e a gente às vezes começava com metal. “Ah, vocês têm que passar coisas mais calmas…”. Eu dizia “não mandas no meu programa, meu”. Se é para passar Pennywise na primeira hora, passamos.

 

E depois de saíres da Ria?

Andei sempre a saltar. Depois fui para a Botaréu. Depois vim para a Aveiro FM, como colaborador de dois programas, o Cais do Paraíso e o Quatro Luas. Também colaborava com a Cidade. E depois formámos o Clip, no Diário de Aveiro. Encontrei agora uma pessoa do Clip, no São Gonçalinho. Eu estava meio bêbado, mas sei que era a miúda que fazia o design.

 

E as pessoas conhecem-te? Tu és uma espécie de figura mítica em Aveiro…

Não. Isso as pessoas dizem porque fica bem. “Olha, aquele gajo é um gajo porreiro”. Poucas pessoas me conhecem. O problema aqui em Aveiro é que não me conhecem, não sabem o que eu fiz.

 

Também tiveste uma loja de discos…

Tive uma loja de discos nos anos 90. Era no Riaplano. Era a Bang. Se calhar foste lá. És aqui de Aveiro? Que idade tens?

 

48.

Ah, também já não és novo. Há muitas pessoas que a gente não conhece aqui, novas e velhas. Mas isto é uma aldeia. As bandas que vinham cá tocar iam sempre ao Ramona, era típico, e já tinha a fama dos hambúrgueres. E uma vez um gajo dos Despe e Siga, o Varatojo, pergunta “vocês dão-se todos bem aqui, não há porrada?” Eu assim “porrada porquê? Isto é uma aldeia, meu”. A gente somos meia-dúzia. Se bem que os betos frequentavam mais o Taco.

 

Fala-me da Bang…

Era uma loja de banda desenhada e música – vinis, CD... Sempre houve música alternativa em Aveiro. Sempre chegou tudo aqui. Só que em banda desenhada não. O forte da loja era a BD, a novidade. A Bertrand tinha duas ou três revistas semanais, mas o mais não compravas cá. Eu trazia do Porto e vendia cá ao pessoal. Éramos três. Falei com um colega que me estava a ajudar na Martelo Pneumático, o Rui Oliveira, que tinha os Cruel Eight, a única banda de metal de Aveiro da altura. E o Carlos Claro. Mas a loja acabou por fechar, não conseguíamos cumprir horário. Era impossível.

 

Mais recentemente abriste outra loja de discos…

Foi durante a pandemia. Eu queria abrir no Porto, não era cá. Mas desisti do Porto, ficou muito caro, extremamente estúpido. Aqui em Aveiro também, mas eu consegui porque as pessoas foram bastante decentes. Eu disse “isto é para o negócio disto, disto e disto, não posso dar mais que isto”. E concordaram. E durante o covid não paguei dois ou três meses…

 

Era ao pé da estação, não era?

Era na Rua Comandante Rocha e Cunha, onde eu brinquei na minha infância. Chamava-se Love & Hate, amor e ódio. Pensava que ia ser a minha reforma.

 

A Love & Hate acabou por durar pouco tempo…

Eh pá, não valia a pena. Estava a ter prejuízo. Esteve aberta três anos e pouco.

 

E o que fizeste mais na vida?

Estive a trabalhar no Porto… Tirei um curso de cozinha, trabalhei na Pizarte, no Centenário… Estive na Holanda… Também passei música, no Mercado Negro por exemplo.

 

Ainda vais a concertos?

Às vezes vou. Porto, Lisboa…

 

Que música ouves agora?

Ouço tudo. Desde música extrema à música erudita. Sou apaixonado por música, sempre fui assim. Sempre vi coisas diferentes. A roda gigante e as bolinhas de Natal já não me dizem nada. Eu já vi coisas mesmo fantásticas, completamente fabulosas, e feitas com pouco dinheiro.

 

Tinhas uma vida de boémia…

Sempre. Ainda tenho. Mas não faltei nenhum dia ao trabalho.

 

Tens saudades de alguma coisa?

Fiz tanta coisa... Mas tenho saudades é da rádio.

 

Desligo o gravador. Ele pergunta: “Já acabou? Ainda vou a meio”. Depois assume: “Falo muito. E também me perco, é um defeito que tenho”. E finalmente convida: “Quando quiseres liga para continuarmos”. Pagamos e saímos. É uma figura alta e esguia, com um andar pausado, quase em câmara lenta. Tira um cigarro do bolso e fica a fumar à porta. Despeço-me e enquanto me afasto penso em como a conversa foi uma viagem caótica e em como vai ser difícil convertê-la num texto com ordem e coerência. Lembro-me da pergunta que lhe fiz sobre a alcunha e em como só respondeu 15 minutos depois. A entrevista, penso enquanto caminho, foi uma geringonça instável em que ele foi o piloto principal e eu o passageiro assistindo às suas sinuosas acrobacias. Talvez um dia aceda ao seu convite e embarque novamente.

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3 Comentário(s)

josé almeida
5 mar, 2025

o cidadão entrevistado, não está atribuído ! :-)

pelé
4 mar, 2025

o granada é isto! abraço. ( excelente entrevista )

rui neves
1 mar, 2025

fantástico! parabéns!

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