Prefácio ao Almanaque do SC Beira-Mar
Passa este glorioso clube por 100 anos de existência, construindo, ativamente, o seu próximo século. Não há data tão humanamente comemorativa como o centenário porque, ao contrário do patamar cronológico seguinte, o milénio, é ainda capaz de ser recordado na totalidade, senão por todos, por parentes, amigos e, sobretudo, por parte substancial dos intervenientes nos momentos e acontecimentos que trouxeram o clube até aos dias de hoje.
Em 100 anos há um lastro de tempo ainda visível, tateável, com vestígios de história viva. Há um lastro que perdura em todos nós, beiramarenses de hoje, que nos faz almejar nos constituirmos como descendentes daqueles gloriosos fundadores de um clube de tanta e tal dimensão. Se começamos pelo futebol, hoje somos isso e muito mais. Se começamos no campo do Rossio e depois no Campo do Lé, ali pelas traseiras do cemitério, viemos a percorrer os estádios nacionais e até internacionais. Se nos iniciamos pelo nosso bairro que deu o nome ao clube, hoje somos cidade, região e nação.
Muito caminho se fez neste tempo em que tanta gente trouxe o clube até hoje. Mas o Beira-Mar retribui a todos nós de uma forma colossal e generosa porque nos permite sonhar, desejar, lutar, cantar e, sobretudo, fazer parte. Dá-nos uma cor, uma bandeira, um símbolo, uma expressão, um lugar de ser e estar. Oferece-nos uma possibilidade de vida, uma oportunidade de felicidade, uma cumplicidade de sentimentos, uma partilha de afetos. Talvez todos os clubes desportivos tenham este desígnio, porém, este é diferente, por uma razão que tanto invocamos: “O Beira-Mar é nosso”.
No desporto só há vitórias. Mesmo a derrota é uma vitória com o resultado do avesso. Porque gritamos a euforia de uma vitória que saudamos, festejamos e brindamos e porque diluímos o sofrimento de uma suposta derrota por entre a cumplicidade dos nossos. A eterna vitória está sempre em que, seja nos bons ou maus momentos, ainda que com estado de alma diferentes, ninguém deixa de dar o abraço, o beijo, o olhar mais ou menos lacrimejante de alegria ou tristeza. E depois, ao ir para casa, sabemos que na semana seguinte, no próximo jogo e com isso, no século seguinte, tudo recomeça, como se fosse uma energia permanente que exala vida por todos os poros.
Javier Marias diz que “o futebol é a recuperação semanal da infância”, mas também ocupa um papel fundamental contra os quotidianos da rotina, a demasiada seriedade que se coloca em tudo o que se faz, o individualismo como uma nova religião, lembra Jorge Valdano. Bem vistas as coisas, há algo de loucura nesta entrega ao clube e a uma bola que a queremos nossa, que faz o homem e a mulher, como refere Eduardo Galeano, “ser criança por momentos, brincando como brinca o menino e a menina com o balão e como brinca o gato com o novelo de lã.”
O futebol, como modalidade desportiva, passou por muitas alterações e, como tudo, possuirá evoluções e o seu contrário e, logicamente, nos próximos 100 anos, será necessariamente visto de forma diversa da de hoje. O Beira-Mar estará, certamente, na linha da frente porque a cidade e a região dele necessitam, porém como diz Jorge Valdano, o futebol é um jogo exageradamente humano e “é um recipiente gigantesco onde cabe tudo: emoções, ilusões, cataclismos, sonhos, pesadelos, opiniões, desencontros, polémicas, após cada jogo, para tudo voltar a começar em cada partida, num exemplo de energia renovável que converte o futebol num jogo incerto, num espetáculo maravilhoso, numa indústria crescente e num fenómeno social.”.
O Beira-Mar foi e será feito de gente, de pessoas, de nomes e de encontros: futebolísticos e pessoais. Longos dias são 100 anos, tantos acontecimentos se construíram, imensa dedicação de gente que ficou para a história e ainda mais de outra, talvez a maioria, que a recordação se esfumou na espuma dos dias, anónima, que fugiam ás luzes da ribalta que lhes incomodava a dedicação inteira, a sua vida ou até que, sonhando em jogar, não foram favorecidos pela arte do domínio de uma bola que lhes teimava em fugir dos seus pés, mas que, na bancada, foram jogadores imprescindíveis e de uma generosidade total.
Temos o próximo século muito próximo de estar garantido. E quem o ajudou a fazer? Otávio Vieira, autor de “Eia Avante”, Almanaque do Beira-Mar. Não há futuro sem memória, não há tempo de devir sem lastro, não há horizonte se nele não nos recordarmos de todos aqueles que fizeram o clube de hoje.
“Todos os Nomes”, lembrando José Saramago, foi o que Otávio escreveu. Um a um, em cada jogo, a partir da informação de que dispunha. Por isso “Eia Avante” é um dos livros mais democráticos que conheço. Acentua, nas introduções, algo de relevante, mas, a partir daí, não faz juízos de valor. Uma pessoa, um nome, um atleta, um passo rumo ao futuro e realça o espírito solidário, tão beiramarense e tão aveirense, de que ninguém fica para trás.
Felizmente, ao autor de “Eia Avante”, não lhe aconteceu o mesmo que ao historiador de “Todos os Nomes” que se perdeu nas labirínticas catacumbas do arquivo de uma Conservatória Geral, sendo descoberto, quase que por milagre, ao cabo de uma semana, faminto, sedento, exausto e delirante. Acredito no cansaço da sua árdua procura, mas também na alegria da compensadora da descoberta.