Por vezes, a caminho do carro ao fim do dia, faço um pequeno desvio até à mercearia Palmeira, no bairro da beira-mar, para comprar algum ingrediente em falta para o jantar. A funcionária, uma mulata de caracóis, é a personificação da jovialidade e da alegria. Enche o espaço. Trata os clientes por “meu querido” e despede-se com “tenha um resto de dia feliz”. Nada sei dela, nem sequer o nome. Sei que é a funcionária mais simpática de Aveiro. Até já me deu uma dica secreta para o arroz de brócolos.
Mentalmente tento reconstituir o meu itinerário comercial da última semana. Palmeira (mercearias), Monlou (café), Zico (almoço; fiquei feliz por lá ter reencontrado o sr. Zé, do saudoso Evaristo), Monumento (café), Veneza (café), o quiosque da Ponte-Praça (jornais), mercado de Santiago (frutas e legumes), Lidl (mercearias), um restaurantezinho perto da estação (almoço), a padaria do meu bairro (pão), a dona Carminda, minha vizinha (ovos). O meu dinheiro foi gasto aqui.
Muitos destes negócios são pequenas lojas para quem cada cliente é uma bóia de salvação, um fiozinho de oxigénio, num tempo em que as grandes superfícies geram o fenómeno eucalipto: secam quase tudo à volta. O seu poder centrípeto, sugando multidões de consumidores, não é inócuo – o pequeno comércio respira com dificuldade ou morre. As lojas são como organismos vivos, nascem e morrem. Nada dura para sempre. Mas cada um de nós pode ajudar a que respirem um pouco melhor e durem um pouco mais.
Soube-se esta semana que vai fechar a Xylocopa, no centro de Ílhavo. Abrir uma livraria é um acto de coragem, de loucura até. Comprei lá muitos livros e velhas National Geographic.
O último livro que trouxe é de Muriel Spark. Na badana lê-se que outro escritor, Graham Greene, um dos maiores, a ajudou em tempos de penúria económica “com uma pensão de 20 libras mensais e algumas garrafas de vinho tinto, com a condição de que nunca lhe agradecesse nem rezasse por ele”. Não ajudei a Xylocopa com uma pensão e vinho tinto. Ajudei comprando livros. Também não espero que reze por mim. E quanto aos agradecimentos, somos nós que lhos devemos. Por isso, obrigado. E um brinde com vinho tinto.
De cada vez que morre uma livraria morre um bocadinho de cada leitor.
PS - O projeto da Xylocopa vai continuar ter continuidade no formato digital