Quando li o livro “O que é que eu estou aqui a fazer?”, uma conversa de João Francisco Gomes com Ricardo Araújo Pereira, ainda só se avizinhavam as eleições autárquicas e as presidenciais, mas agora que escrevo este texto sabemos que vamos juntar a estas duas a eleição para a Assembleia da República.
E embora pareça um pouco inusitada a relação entre ambos - o livro e as eleições -, não consegui deixar de pensar em como este livro também poderia ter por título: “como pôr em causa ideias diferentes, sem ofender” ou “conhecer e respeitar ideais distintos dos nossos é o primeiro passo para um diálogo edificante”.
Tristemente, temos vindo a assistir, no panorama político e na sociedade em geral, a uma tendência crescente para:
- Todos se julgarem especialistas e habilitadíssimos a falar sobre os mais diversos temas, entre os quais aqueles que não dominam;
- Achar que falar alto e não dar espaço para que os outros possam defender as suas ideias é uma técnica de argumentação admissível;
- Ofender pessoas, ao invés de defender ideias e de lutar por ideais;
- Não admitir sequer que as ideias contrárias às nossas possam fazer algum sentido e aceitar que as nossas ideias podem não estar sempre corretas.
Parece-me que a leitura deste livro podia ser um excelente manual para uma campanha eleitoral construtiva e dignificante porque é notável a forma como o Ricardo Araújo Pereira, sendo ateu convicto, é um profundo conhecedor da religião e consegue ter as conversas que o livro transcreve, revelando não só o conhecimento muito profundo do que fala, como também revela um enorme respeito pelas ideias diferentes - neste caso, a religião católica – e consegue ter uma conversa sobre um ponto de vista diferente do seu. E fá-lo com muita nobreza e elegância. E isto é, precisamente, o que falta hoje em grande parte dos debates políticos e dos diálogos entre as pessoas, em geral.
“Embora seja ateu, Ricardo Araújo Pereira dedica uma parte significativa do seu tempo a ler, a pensar e a debater sobre a existência de Deus. Talvez porque, como diz durante a nossa conversa sobre o assunto, o humor partilhe com a religião o facto de ser uma resposta para aquelas inquietações existenciais que tantas vezes nos paralisam.”
Entristece-me muito verificar que hoje em dia as pessoas têm muito pouco conhecimento e ainda menos interesse na política – os números da abstenção são reveladores!!! – e creio que a forma como as campanhas têm decorrido, recorrendo a um discurso de ódio constante, a um ataque às pessoas, ao invés de uma defesa de ideias e, mais recentemente, ao recurso às redes sociais com frases curtas e que, sem grande fundamento ou explicação, apenas servem para aumentar o nível de desinformação e alimentar os ódios numa sociedade que está, cada vez mais, intolerante. Mas para ter este discurso e assumir esta postura é, acima de tudo, importante que os líderes políticos se deem ao trabalho de estudar e conhecer a fundo as ideias e os programas contrários – facto que, está à vista, nem sempre se verifica.
A política e os líderes deveriam assumir o papel contrário, defendendo ideais, lutando pelos direitos e impondo o respeito pela diferença.
A mim, este livro prendeu-me do início ao fim, porque me identifiquei com o papel que atribuem ao humor, capaz de nos “ajudar a superar as inquietações da Humanidade”, à semelhança da religião “... o humor, tal como a religião, é uma resposta às grandes inquietações e angústias da Humanidade. O medo da morte, o sentido da vida, a origem de tudo isto, quem somos, de onde vimos, para onde vamos, e por aí fora.”
Tenho em comum com o Ricardo o facto de acreditar muito no poder do humor como ferramenta para nos ajudar a superar as adversidades, levo-me muito pouco a sério e, não só gosto muito de pessoas com sentido de humor, como não me importo nada quando sou o alvo desse humor, até porque, em regra, já gozei comigo antes sobre as mesmas questões. Mas, ao contrário do Ricardo, eu sou católica, mas sou uma católica que não tem pretensões de impor a sua moral aos outros, respeito as outras crenças (desde que respeitadoras dos direitos humanos, porque não abdico dessa questão) e considero que a religião deve ser um ato de amor e que, por isso mesmo, não se pode impor aos outros nem, tão pouco, deixa espaço para a intolerância. “Se o Deus dos cristãos é um Deus cuja matéria é o amor, então o amor implica a liberdade. Nós só podemos ser criaturas totalmente criadas por amor se formos totalmente livres. Deus cria-nos com uma liberdade tal que inclui até a liberdade de não acreditarmos nele.”
Penso que esta é uma mensagem que devemos retirar do livro, liberdade para pensar diferente e o dever de respeitar as diferenças sem tentar impor a nossa verdade como única e imperativa.