Dezasseis pessoas fundaram o AveiroArte – Círculo Experimental dos Artistas de Aveiro em 1971. Do grupo, só duas eram mulheres. Quando peço a Cândida do Rosário para a entrevistar, convida-me para sua casa. Prefere falar na sua sala do que num café, diz, e então dirijo-me a uma ruazinha do bairro da Beira-mar em cuja fachada estão cravadas umas letras em cerâmica feitas por Artur Fino, com quem foi casada, que formam a inscrição Casa do Norte.
Recebe-me à porta e encaminha-me para o primeiro andar, por entre quadros, tapeçarias e peças de cerâmica. Esta mulher de 80 anos senta-se num sofá com um grande quadro seu por trás. A gata Gigi deambula por aqui – deita-se e torna-se num corpo inerte, depois desperta, lembra-se que é um felino e brinca com os cortinados da janela. Falamos do AveiroArte; da Murtosa, de Aveiro e de Lisboa; e de rissóis e do 25 de Abril. “Não me posso queixar da vida”, dirá.
Foi uma das fundadoras do AveiroArte. Do que é que mais se lembra desse tempo?
Foi um tempo bastante agradável. Foi um tempo em que eu não senti ser mulher, ou seja, eram só homens, mas eles apoiavam-me. Eu era a única mulher, embora a Clara Meneres fizesse parte, mas vivia em Lisboa. Eu, como era professora na João Afonso, tinha algum tempo livre para chatear a Câmara, porque saía às três, quatro… Dava para ir chatear os vereadores.
Precisava de chatear os vereadores porquê?
Porque nós precisávamos de dinheiro para o catálogo, espaço para expor, de transporte para ir para aqui e para ali com os quadros… Desses nunca tive tão bom feedback. O AveiroArte não tinha dinheiro, e portanto tinha de ser a Câmara a emprestar-nos um transporte para levarmos os quadros, tinha de ser a Câmara a arranjar o sítio… Começámos as primeiras exposições no Edifício Fernando Távora, que agora se chama Alfa ou Beta ou qualquer coisa assim.
O Atlas.
Isso. Depois foi na Misericórdia, algumas no Museu e depois onde o AveiroArte tem a sua sede.
Estamos a falar de que ano?
71. Aquilo começou numa conversa de intervalo do cinema. Uma conversa entre eu, o Vasco Branco… O Vasco Branco já estava picado. Picado no sentido que alguém já lhe tinha falado. São coisas que praticamente só eu é que sei e acho que tenho que dizer a alguém…
Está a falar da ideia de criar o AveiroArte?
A ideia do AveiroArte nasceu na olaria que era do Vasco Branco, do Jorge Corte Real, com o mestre Júlio Resende. O mestre Júlio Resende veio para Aveiro fazer os painéis para o Palácio de Justiça de Lisboa.
[Júlio Resende foi um pintor português nascido em 1917 e falecido em 2011. Seis painéis em grés para o Palácio da Justiça de Lisboa são uma das suas obras]
Fê-los cá em Aveiro?
Fê-los em Aveiro, sim. Na tal olaria que era do Jaime Borges, do Vasco Branco, do Jorge Corte Real... E no fim do dia de trabalho - eu também nessa altura estava a fazer um painel para o meu pai, a Clara também ia lá trabalhar - o mestre Júlio Resende diz “vocês têm aqui um grupo de artistas, por que é que vocês não fazem uma associação?” Ele sabia dos salões de Aveiro, em que havia um grupo de artistas.
A semente foi ele que lançou, portanto…
Foi ele um bocadinho que a lançou ao Vasco Branco. Na altura eu era uma miúda. No intervalo do cinema, no Aveirense - tinha os intervalos grandes e as pessoas conversavam um bocadinho - ele encontra-nos e lança a ideia mais de chofre.
O Vasco Branco?
O Vasco Branco. Viu o apoio da nossa parte e passado um tempo fazemos uma reunião, já com uma espécie de estatutos, ou pelo menos a ideia filosófica do que era o AveiroArte.
Lembra-se onde é que foi essa reunião?
Foi nos Galitos. Nós todos, ou quase todos, éramos pessoas um bocadinho ligadas à esquerda. Estamos em pleno fascismo... E não era muito fácil reunirmos.
Eram politicamente ativos?
Uns mais ativos, outros menos. Era gente do MDP/CDE ou coisa assim.
[O Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral foi uma organização política de oposição ao Estado Novo]
Alguma vez sentiu a PIDE, por exemplo, de olho em vocês?
Sim. Senti, embora o meu pai fosse da situação. Algumas vezes nos vieram prevenir “tenham cuidado”. Sobretudo quando eu resolvi casar com o Artur as coisas correram um bocadinho mal. O meu esposo tinha frequentado um curso de design, que tinha o Ernesto de Sousa e outros. Era um curso em que a PIDE ia assistir às aulas teóricas, com o jornal enrolado. E ia lendo o jornal para ver se nós dizíamos alguma coisa pouco recomendada. Por outro lado, também me tinha dado com pessoas como o Zeca Afonso, o Fanhais... Portanto eu era uma pessoa um bocadinho marcada pela PIDE.
[Artur Fino foi um artista plástico aveirense, falecido em 2024. Ernesto de Sousa foi um artista, cineasta, curador, crítico, professor e historiador de arte. Escreveu na Seara Nova e fundou, em 1947, o primeiro cineclube português, o Círculo de Cinema, mais tarde fechado pela PIDE. Francisco Fanhais foi um cantor de intervenção]
Conhecia o Zeca Afonso?
Conheci, quando estive a estudar em Lisboa. A ideia [de fazer a reunião no Galitos] foi do David Cristo, que era presidente dos Galitos ou assim. “Bem, nós temos uma secção fotográfica, vocês podem ir para lá”. E as primeiras reuniões foram exatamente nos Galitos. E durante muito tempo, as reuniões, as entregas de trabalhos, era tudo nos Galitos. E fomos vivendo assim. Conseguíamos fazer normalmente uma ou duas exposições por ano. Havia uma seleção de trabalhos muito rigorosa. Entretanto, fui viver para Lisboa, quando me separei do Artur, porque tinha lá a minha família, os meus amigos. Nesse altura, pertenço ao AveiroArte mas não estou aqui, ativa. Mas agora voltei.
Vamos voltar atrás, ao início. Nasceu onde?
Nasci no Monte, na Murtosa.
A sua família era de lá?
O meu avô era médico lá. O meu avô era de Macinhata, Águeda. Já lá havia um médico em Macinhata e ele teve que procurar outro sítio para exercer a medicina. Nessa altura, a minha mãe e o meu pai viviam no Monte, e eu nasci lá. Aliás, uma das especialidades do meu avô era exatamente partos. Mas nunca vivi na Murtosa. Vim de lá com oito meses. Não tenho memória da Murtosa.
Vieram para Aveiro?
Viemos para Aveiro. O meu pai era veterinário. Nessa altura estava na tropa. Estamos no fim da guerra de 40. Portanto, ainda estaremos em 44, princípio de 45, e o meu pai foi chamado para a tropa. Ele era especialista em leites e estava a montar um laboratório em Aveiro, para a Junta Nacional dos Produtos Pecuários.
Onde é que viviam, lembra-se?
Lembro. Lembra-se onde era o PCP, a casa dos Aleluias? Vivíamos num prédio ao lado, que depois foi abaixo. Mais tarde vivemos noutro prédio. Não sei se é do tempo de Vítor Guimarães, quando havia um posto de gasolina no meio da cidade... Vivemos lá.
Teve uma infância normal?
Normal, mas com muita repressão. Tinha toda a repressão de casa e tinha a repressão do país.
A repressão de casa porquê? Os seus pais eram rígidos?
Pai de direitas. E portanto eu não tinha acesso a algumas coisas e também não podia andar com certas pessoas. O meu oitavo ano foi muito divertido, apanhei um chumbo brilhante. Ninguém percebeu porquê. Chumbei porque descobri que uma das poucas coisas a que tinha acesso era a Enciclopédia Luso-Brasileira, que o meu pai tinha. Comecei a descobrir que por lá conseguia encontrar qualquer outra coisa que eu andava à procura e que não sabia o que era.
Mas chumbou porquê?
Porque levava a vida a ler a enciclopédia em vez de ler os livros do liceu. Não havia Google e era a única forma de estar informada e de saber coisas diferentes.
A sua mãe fazia o quê?
Era doméstica. Andou no colégio de Famalicão, na Curia, depois casou.
[O Colégio Nossa Senhora da Assunção, no concelho de Anadia, é propriedade da Província Portuguesa de São José de Cluny de Portugal, uma congregação religiosa apostólica de caráter internacional]
Onde é que fez a escola?
No liceu do meio.
E a escola primária?
Os primeiros anos fiz perto de casa, que era um asilo. Havia aí uma escola primária e depois, quando acabou, vim para a Vera Cruz. E depois fiz o liceu no Liceu Nacional de Aveiro.
Os tempos de escola foram tempos felizes para si?
Relativamente. Mas muito inquietos porque eu percebia que havia qualquer coisa a que não tinha acesso. Vocês hoje não percebem isso.
Nós não passámos por aquilo que falou, pela repressão, etc…
Não havia televisão. O rádio era controlado e os livros também. A pessoa não tinha mesmo acesso. Ou vivia numa família de esquerda e aí tinha acesso ou, se vivia numa família de direita, não tinha o mínimo acesso. Ou melhor: tinha acesso a muita coisa mas não ao que eu pretendia.
A Cândida criança e adolescente era uma Cândida rebelde?
Não, porque senão levava no focinho. A minha mãe era muito rígida. E eu tenho uma rebeldia interior, mas não uma rebeldia física. Tinha que me acomodar àquilo que me rodeava.
Sentia-se frustrada porque sentia que havia alguma coisa para além daquilo que conhecia?
Além do que me diziam... Mas não tinha acesso. Havia uma sala que era escritório e a minha mãe não percebia que eu consultava a enciclopédia.
E tinha amigos mais subversivos?
Não. Aliás, tive sempre muito poucos amigos. O meu pai passava os fins de semana na Torreira, adorava ir para a Torreira. Portanto, eu nem sequer tinha aqueles amigos de liceu com quem se vai ao cinema ou assim, porque ao fim-de-semana não estava.
E gostava de ir para a Torreira?
Gosto muito da Torreira. A Torreira para mim era o sentido de liberdade, podia sair de casa à-vontade. A minha mãe deixava-me sair de casa, pegar na bicicleta e ir passear. A Torreira não era traumática, mas não me dava nada, no sentido de encontrar outras pessoas que pensassem como eu.
No meio disto tudo como é que despertou para as artes?
Muito miúda. O meu pai desenhava muito bem. Talvez tenha tido um bocadinho acesso a algum material… Mas durante algum tempo não sabia o que é que ia fazer em arte. A páginas tantas não aguentei com esta repressão toda, nem o liceu nem a casa.
E faz o quê?
Descobri um curso que eu julgava que era de design na Fundação Ricardo Espírito Santo, em Lisboa. Já há alguma informação, já estamos nos anos 60... A família do meu pai está em Lisboa. E eu descobri esse curso e as pessoas acharam muito bem. Os meus tios eram professores catedráticos e, talvez com uma certa abertura, perceberam que eu estava a ser um bocado atrofiada.
E então foi para Lisboa… Com que idade?
18.
Foi uma libertação para si?
Foi. Vivi em casa de uma tia minha, que também era uma pessoa um bocadinho mais desempoeirada, e depois encontrei pessoas muito desempoeiradas. Não na Fundação, que era um bocadinho burguesa de mais. Quando tinha acabado o primeiro ano da Fundação, abriu um curso que se chamava CFA, na Sociedade de Belas Artes. E aí tive professores fantásticos.
CFA era o quê?
Curso de Formação Artística. Tinha sido organizado por Fernando Pernos e tinha professores como o José Blanc de Portugal, o Ferreira de Almeida, o Gusmão, o Manuel Tainha e outros. Um grupo de professores fantásticos. Foi um curso que me fez muito bem. Lamento que os meus colegas desse curso não tenham trabalhado muito. Praticamente sou a única que ainda trabalha.
Havia muitas mulheres nesse curso?
Fifty-fifty. Foi um curso muito bom. Alguns dos nossos professores tinham grandes relações com a Fundação Gulbenkian. O Santos Simões, por exemplo, o homem dos azulejos... A Gulbenkian proporcionou-nos duas viagens - não pagaram integralmente mas pagaram grande parte. Uma a Paris ver os 80 anos de Picasso e outras coisas. E uma a Londres. Na altura não se viajava…
Como é que foi essa transição para Lisboa, com 18 anos?
Foi fácil. Tinha os meus primos todos. Por outro lado, eu também sou fácil de arranjar amigos verdadeiros. Arranjei alguns amigos para a vida.
Fez o CFA. E depois?
Por diversas razões tive que vir para Aveiro. Não tinha trabalho em Lisboa.
Mas gostaria de ter permanecido em Lisboa?
Acho que sim. Ainda tive um trabalho, mas nessa altura os designers eram chamados quando as fábricas estavam falidas. Achavam que nós fazíamos milagres.
Lembra-se de que trabalho foi esse?
Lembro. Era uma fábrica de fogões, a Presmalt. Quando percebi que aquilo estava falido não valia a pena. Tinha fogões e outras coisas desenhadas, mas comecei a ver que eles não tinham dinheiro para realizar.
E então regressa ao ponto de partida, à casa dos pais?
Sim. Entretanto, conheci o Artur. O Zé Ernesto estava a fazer um filme, “Almada, nome de guerra”. Outros artistas tinham-lhe dado trabalhos e ele tentava fazer uns leilões. E tentou fazer um leilão cá em Aveiro e pediu-me se eu tratava disso. Eu ainda estava há pouco tempo em Aveiro, sabia que não tinha acesso às pessoas mais ligadas à coisa. Fui ter com um rapaz que eu conhecia... Estamos em vésperas das eleições, já havia uns candidatos não tão do regime. Portanto, aqui em Aveiro estava toda a gente muito ocupada. Vasco Branco, etc… Estavam ocupados no MDP/CDE. Entretanto, fui à procura de alguém que me desse uma ajuda.
Tinha arranjado o Salão Cultural da Câmara, no tal edifício que agora se chama Atlas. Comecei à procura e, entretanto, disseram-me “vá ali ao Ulisses” – que eu conhecia porque era amigo do meu pai –, “tem lá uns rapazes que são capazes de lhe dar uma ajuda”. E um desses rapazes era o Artur.
Esse Ulisses era quem?
Ulisses Pereira. Era o tipo que vendia a cerveja Sagres em Aveiro. Tinha um armazém enorme à entrada de Taboeira.
E então o Artur Fino trabalhava lá?
Trabalhava lá. E ele foi-me ajudar. Ficámos todo o dia a conversar. Foi assim que conheci o Artur.
E como era o jovem Artur Fino?
Por alguma razão fiquei com ele. Era um tipo com interesse, um interesse intelectual. Eu comecei a admirá-lo porque ele, não tendo tido escola - ele veio de escola comercial -, faz isto [aponta para um quadro atrás de mim]. Ficámos sempre a dar-nos bem mas a páginas tantas não deu mais. Estivemos juntos 20 anos.
Entretanto arranjou trabalho? Como é que foi a sua vida então?
Tive uma série de propostas de trabalho que não funcionaram. E entretanto fui dar aulas. Tentei fazer arquitetura de interiores mas fiquei mal porque contratei as pessoas para fazer o trabalho e depois não foi pago. Eu tinha algum dinheiro porque ganhei dois prémios de design.
Com que trabalhos? Ainda se lembra?
Um era para a Spal, era um serviço de jantar. E outro era para a Mobile, que eram peças para o escritório, daquelas de pôr em cima da secretária. Tinha algum dinheiro, portanto. E também vivia em casa dos meus pais, que não tinham necessidade de me pedir o dinheiro para o leite e o pão.
E então foi dar aulas?
Quando vi que não tinha hipótese, fui dar aulas.
Estamos em que ano? Situe-me…
73. Eu apanhei o 25 de Abril a dar aulas.
Dava aulas de quê?
De Trabalhos Manuais. Eu dava qualquer coisa porque precisava de ganhar dinheiro.
Em que escola?
Na João Afonso.
E gostava de ser professora?
Gostei muito de ser professora. Fui professora quase por necessidade, porque entretanto nasceu a Ágata, e eu tinha necessidade de me sustentar e de sustentar a filha. O Artur também não ganhava nada por aí além.
O Artur Fino nessa altura fazia o quê?
Trabalhava para o Ulisses. Nesses tempos ela era técnico de vendas.
E então gostava de dar aulas…
Gostei muito de dar aulas. Posso-lhe dizer que fui muito feliz a dar aulas.
Sempre na João Afonso?
Estive na João Afonso, fui fazer estágio a Coimbra e depois voltei para a João Afonso. Entretanto trabalhei na CERCI [Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas], quando a minha filha estava na João Afonso. Eu achava que era horrível estar na mesma escola da minha filha, porque eu gostava que ela fosse livre. Fui trabalhar para a CERCI e entretanto fui trabalhar para a Gafanha.
Foi professora durante quantos anos?
Sei lá... Quase 40. Sobretudo em Lisboa corria muito bem, era uma escola muito diferente da João Afonso, em que consegui fazer coisas divertidíssimas com os alunos. Aliás os meus alunos ganhavam sempre os primeiros prémios. Inclusive, no ano das comemorações de não sei quantos anos do Santo António eles conseguiram, a nível nacional, ganhar o primeiro prémio.
Já damos esse salto para a frente, outra vez para Lisboa, mas deixe-me perguntar-lhe primeiro como foi o 25 de Abril para si… Era professora na João Afonso e eis que eclode a revolução…
Nos Trabalhos Manuais havia um dia em que se tinha de fazer culinária. Culinária era estúpido fazer num dia… Eu dava a volta à coisa – um prato em que cada pessoa pudesse trazer um bocadinho de qualquer coisa e eu pudesse fazer um prato. Eu lembrei-me de fazer rissóis – cada um trazia um bocadinho de farinha ou assim... Eles faziam o almoço comigo e depois convidavam os professores para vir almoçar com eles. Depois tínhamos de arrumar a cozinha etc e só sairiam por volta das 4 da tarde. O Artur nessa altura trabalhava no CETA [Círculo Experimental de Teatro de Aveiro]… Nós tínhamos chegado a casa e ouvimos “Depois do adeus” e depois a “Grândola”. Não estávamos habituados a ouvir essas coisas na rádio… Foi um bocadinho complicado… Mas estávamos tão habituados a que não sucedesse nada que achámos que não tinha sucedido nada. De manhã levantei-me a correr, para arranjar a miúda. Ela na altura ficava em casa dos meus pais e eu tive muito medo… Eu fui para as aulas sem saber e só quando estava na escola é que me apercebi. Não havia telefone na escola e fui aos serviços da Câmara, que eram em frente, telefonar ao Artur, para as cervejas, para ele ir buscar a Ágata, porque eu não sabia o que ia suceder e os meus pais eram vulneráveis – o meu pai era da Legião, da Mocidade, da União Nacional e de outras coisas quejandas. Por outro lado, eu estava presa porque tinha de tomar conta dos miúdos. Entretanto já havia notícias… Tive de pegar nos miúdos até aos transportes deles, os pais começaram a vir buscar os filhos… Mas ainda fiquei com alguns… Mas não se sabia bem o que se estava a passar…
Como é que o seu pai, tão afeto ao regime, reagiu a esses acontecimentos?
Reagiu bem… Ele era afeto ao regime por variadas razões, mas ele não era fascista ideologicamente. Estava no meio dessas coisas todas por outras razões, e não eram razões económicas. A vida não era fácil com a minha mãe e ele arranjava maneira de estar o menos possível em casa.
Depois do 25 de Abril continuou em Aveiro?
Continuei em Aveiro a dar aulas.
Até que volta a Lisboa, é isso?
Divorciei-me e fui para Lisboa. Tinha lá os meus tios, os meus primos…
Em que ano foi isso?
Ponha mais 20 anos em cima de 71.
Foi para Lisboa também dar aulas…
Fui dar aulas, para a Escola Manuel da Maia, em Campo de Ourique, Casal Ventoso.
Como era o Casal Ventoso nessa altura?
Era melhor do que é hoje. Havia uma relação de amizade de tal forma entre as pessoas… Uma relação familiar de vizinhança. Por isso a droga se pôde instalar lá, porque ninguém denunciava ninguém.
Onde é que vivia?
Em Campo de Ourique. No Casal Ventoso só viam as pessoas do Casal Ventoso. Nós professores podíamos entrar, havia uma espécie de guardas, que davam o sinal se eram professores, serviço de saúde… Era muito mau.
Era professora de quê?
De Educação Visual e Tecnológica.
Mas além disso fazia arte…
Sim, continuei a fazer arte. Fazia tapeçaria, cerâmica… E depois faço umas coisas malucas…
O que são coisas malucas?
Depois mostro-lhe, quando acabar eu mostro-lhe…
Nunca deixou de fazer arte…
Nunca deixei. A vantagem de ser professor é que nos deixa algum espaço mental para fazer arte.
Trabalhava onde?
Durante um tempo tive um pequeno atelier em Lisboa, com uma amiga minha. Era uma cave e teve umas inundações muito aborrecidas… Eu fui para Lisboa viver num quarto alugado, em Campo de Ourique.
Isso foi um choque para si?
Não. Eu já conhecia Lisboa e portanto não foi um choque de maneira nenhuma. Talvez tenha sido um choque um bocadinho a questão do quarto, porque estava habituada a ter uma casa…
Era nesse sentido que lhe estava a perguntar. De repente, já adulta, vê-se a viver num quarto…
Era um quarto de uma senhora de idade, as coisas corriam mais ou menos bem. Entretanto, consegui uma casa, o que não era fácil, e aí passei a ter atelier em casa. Dentro do possível tenho sempre atelier em casa.