O centro histórico de Ílhavo, outrora vibrante e dinâmico, enfrenta um cenário de estagnação e abandono, onde as ruas ecoam mais lembranças do passado do que os passos de quem as habita. O tempo esbateu as memórias de um quotidiano efervescente, marcado por um jardim que fervilhava de vida, um pavilhão desportivo que convocava famílias inteiras para assistir aos jogos, espetáculos e saraus, sem esquecer as ruas, os mercados, as lojas e as oficinas repletas de pessoas.
Esse declínio, contudo, não aconteceu subitamente. Foi um processo gradual, impulsionado por decisões urbanísticas questionáveis, pela ausência de uma estratégia de desenvolvimento coerente e pela perda de sentimento de pertença à comunidade. A inevitável proximidade com Aveiro, que soube capitalizar melhor as suas oportunidades, também teve um papel relevante.
Um sinal visível dessa decadência é o recente encerramento da livraria Xylocopa. No último ano e meio, este espaço tornou-se muito mais do que um ponto de venda de livros — foi um catalisador de encontros, conversas, partilhas, workshops e clubes de leitura. Ana Pereira, mentora do projeto, promete manter o espírito da Xylocopa vivo através da internet e de iniciativas na área da mediação de leitura. Contudo, a loja física no número 14 da Praça da República fechou as suas portas a 31 de março.
Paulo Morgado, vice-presidente da ADERAV – Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro –, cresceu entre estas ruas e ainda conserva memórias – as suas e aquelas que lhe foram transmitidas pelos pais e avós – de um centro cheio de atividade. Recorda o aroma a eucalipto dos fins de tarde, quando a antiga Padaria Sopanilde acendia os fornos, a azáfama das senhoras, nas manhãs de sábado, em frente ao cabeleireiro do senhor Gabriel, os Amadores, os Bela e os Vizinhos, sem esquecer a vaidosa Anitex. Recorda, sobretudo, quando o antigo rio de Ílhavo, agora “encanado e esquecido” sob o betão, ainda corria a céu aberto, desenhando a geografia natural de um território que poderia ter sido um ponto de atração em vez de um espaço desfigurado pela modernidade. "O rio continua a correr, mas foi escondido", lamenta. E nesta ocultação, escondeu-se também parte da identidade do centro do centro urbano.
É certo que o crescimento da cidade de Aveiro, cidade vizinha e capital de distrito, bem como a expansão da universidade, também contribuíram para a alteração dos fluxos de população e de desenvolvimento na região. Ílhavo, em vez de encontrar um caminho próprio, viu-se sugado por essa nova centralidade, não conseguindo adaptar-se ou criar novas âncoras para reter e atrair pessoas.
A desertificação demográfica, que ditou o declínio do comércio local, espelha-se hoje em ruas silenciosas, casas vazias ou devolutas e numa comunidade cada vez mais vulnerável. No centro histórico de Ílhavo, multiplicam-se edifícios desgastadas pelo tempo. A “tendência para confundir o antigo com o velho” tem levado à destruição de património valioso, frequentemente substituído por construções de gosto duvidoso, alheias à identidade do lugar. Ora, sem habitação acessível e de qualidade, sem incentivos à recuperação do património edificado e sem uma estratégia concertada entre privados e entidades públicas, Ílhavo perdeu a capacidade de atrair jovens e novos residentes, perpetuando um círculo vicioso de abandono e falta de investimento. "Sem medidas concretas para apoiar quem quer investir, dificilmente se mudará este panorama", aponta Paulo Morgado.
No contexto desta reflexão, alerta Paulo Morgado, é importante considerar também uma certa “quebra no sentido de comunidade”. Há cerca 10 anos, o relatório do projeto MIMAR – Memória e Imaginários de Mar –, conduzido por uma equipa de investigadores da UA – Universidade de Aveiro – sob a liderança de Maria Manuel Baptista, em parceria com a Câmara Municipal de Ílhavo e no âmbito da RUCHI – Regeneração Urbana do Centro Histórico de Ílhavo –, revelava um preocupante esvaziamento dos sentidos culturais e sociais da comunidade ilhavense. O estudo descrevia "uma sociedade profundamente ferida pela desvalorização da dimensão simbólica das suas vidas”, com dificuldade em investir o presente por permanecer bloqueada por uma excessiva fixação no passado.
A economia bacalhoeira, outrora a espinha dorsal da identidade ilhavense, moldara de forma indelével a estrutura social da cidade. No entanto, com o declínio da pesca do bacalhau e a ausência de um novo horizonte de sentido, Ílhavo mergulhou num ciclo de estagnação. A falta de políticas públicas eficazes para mitigar esse processo acentuou a perda de vitalidade das suas festas religiosas, de tradições populares, como os grandiosos desfiles de Carnaval, e dos espaços de sociabilidade. Onde antes existia o Cine Teatro Atlântico, um pólo de encontro e cultura, capaz de criar dinâmicas de convívio que ultrapassavam a simples projeção de filmes, agora jaz apenas um vazio – o edifício sucumbiu às chamas em dezembro de 1989. O mesmo destino teve o Mercado da Pala, uma obra de engenharia notável, demolido para dar lugar à Casa da Cultura. "Poderia ter sido um espaço híbrido, como tantos mercados europeus que combinam comércio, cultura e empreendedorismo", observa Paulo Morgado.