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Escutar é um modo de ver, com Arlindo Silva: “E lá fui eu para o palco”

Artes

 

Criado em 1959, o CETA - Círculo Experimental de Teatro de Aveiro é uma instituição cultural histórica da cidade. Arlindo Silva dedicou-lhe mais de meio século. Pisou as suas tábuas centenas de vezes, como ator amador. Hoje tem 86 anos, está quase cego e move-se com dificuldade. A mulher trá-lo pela mão até um pequeno café com vista para o ISCA e para o bairro de Santiago. Traz consigo um álbum com recortes e fotografias das peças em que participou, oferecido quando fez 50 anos de ligação ao CETA. Sentamo-nos, pede dois cafés e fala sobre a sua vida – no teatro, no desporto e nas fábricas.

 

Comecemos pelo início. Nasceu cá em Aveiro?

Nasci nas Barrocas, brinquei aí… Depois foi quando comecei a ir para o Galitos, o campo era ali no parque, e era onde eu passava o meu tempo. Vinha a pé por ali fora, ou de bicicleta… Segui a minha carreira desportiva, no basquete, foi a isso que me dediquei como praticante e treinador. Foram 30 anos. Estive em Lisboa, tirei lá uns cursos... Fui praticando até que, com 21 anos, fui convidado para ir para a Amoníaco Português, para Estarreja, para a fábrica. E eles lá também praticavam basquete e andebol…

 

[A empresa Amoníaco Português foi criada na década de 1940 em Estarreja, produzindo amoníaco sintético, ácido sulfúrico, sulfato de amónia e fertilizantes. Daria origem mais tarde, juntamente com outras companhias, à Quimigal]

 

Foi para lá trabalhar?

Fui para trabalhar. Eu era mecânico, trabalhava numa fábrica em Aveiro, o Bóia & Irmão. Foi o meu primeiro emprego.

 

[Bóia & Irmão era uma fundição junto ao Cais Paraíso]

 

Que idade tinha quando começou a trabalhar?

Fui para lá com 14 anos ou 15. Só ia para o liceu quem tinha condições, não era qualquer um. O meu pai era motorista e a minha mãe não fazia coisa nenhuma, veio para cá de perto de Oliveira de Frades.

 

[Oliveira de Frades é um concelho do distrito de Viseu]

 

O seu pai era de cá…

Era ali em Cacia. Era motorista no Vieira e Roque, uma empresa de camionagem. Trabalhou lá muitos anos, foi um dos fundadores. E também foi motorista nos Bombeiros Novos. E então eu cheguei à idade de começar a fazer alguma coisa e fui trabalhar.

 

Onde é que fez a escola?

A escola primária fiz no asilo, encostado à igreja do Carmo. Tinha lá muitos asilados naquela altura, e tive até alguns nas minhas classes. Depois foi para Aradas. Eu, entretanto, trabalhava no Bóia e um rapaz que também jogava basquete comigo, era mais velho que eu um bocado, já trabalhava em Estarreja e desafiou-me a ir para lá. Então um engenheiro qualquer convidou-me e lá fiquei. Andei lá uns anos a trabalhar. Era a figura da terra. Eu não só jogava basquete como andebol – mas eles gostavam mais de andebol porque tinha golos e tal... E eu adaptei-me àquilo. Passei lá uns bons anos, pá. E o meu pai faleceu precisamente na primeira semana que eu para lá fui trabalhar. Tinha dois irmãos mais novos e a minha mãe não trabalhava.  E eu tive que trabalhar. Fui muito bem tratado, mas depois aquilo começa a cansar. Trabalhar e treinar e vir no comboio das tantas... É certo que havia muita malta que tinha sempre a porta aberta para me dar de dormir e comer. Mas foi quando o João Casal, o dono da fábrica da Casal, me convidou. O meu irmão, entretanto, cresceu e foi para a escola de aprendizagem da Casal. E quando o João Casal soube que eu que era de uma área que a Casal precisava muito, convidou-me para ir à sua casa ali na avenida. Tive uma conversa com ele e aceitei.

 

[A Casal foi uma empresa metalúrgica de Aveiro, onde se produziam as motorizadas Casal. Fechou em 1999]

 

Então foi trabalhar para a Casal…

Vim trabalhar para a Casal. E regressei para jogar no Galitos. Isto foi em 1965. Que foi quando eu fui para o CETA. O meu primeiro espetáculo foi “O avançado centro morreu ao amanhecer”. Isto porque eu acompanhei o Zeca Fino, que era meu colega a jogar basquete, ele e o irmão mais velho, o Artur Fino. Era um tipo muito fixe, tenho muitas saudades dele. [a voz embarga-se e quase chora]

 

["O avançado centro morreu ao amanhecer" é uma peça do argentino Agustin Cuzzani]

 

Lembra-se como se deu a sua chegada ao CETA?

Um dia o Zeca, num sábado à tarde, depois de um jogo, estava-se a vestir muito à pressa. Eu pergunto “onde é que vais com essa pressa toda, pá?”. “É pá, tenho ensaio agora, já estou atrasado”. “Ah, e eu posso ir contigo?” E lá fui eu para o CETA. Ainda o CETA era no primeiro andar daquele restaurante na Praça do Peixe, o Mercantel. Foi a primeira sede que o CETA teve. Era um salão, não tinha mais nada. As nossas casas-de-banho eram latas de tinta vazias. E depois íamos despejar à ria. Lá estivemos uma temporada até arranjar aquele barracão onde está agora.

 

Chegou ao CETA já depois da sua fundação, em 1959…

Foi no ano em que fui para a tropa. A fundação do CETA foi feita por um grupo de rapazes, entre eles o Gaspar Albino e o Jaime Borges, o Jaiminho, que escreviam no Litoral sobre artes, isto e aquilo. E tomaram a iniciativa de formar um grupo de teatro e arranjaram aquela sala lá em cima, que estava vazia. E estivemos ali uns anos, até à década de 70.

 

Onde é que fez a tropa?

Fiz a tropa toda aqui em Aveiro. A malta do meu ano foi toda para Angola. Alguém tinha de ficar cá. E eu como jogava basquete e tinha um capitão que era muito meu amigo e era da direção do basquete… E tinha um primeiro sargento que me adorava. Fiz uma tropa um bocado à sorte, fui sempre protegido, nunca tive problema nenhum… E na altura andava a estudar à noite.

 

Não foi um dos fundadores, mas fez parte da companhia quase desde o início…

O meu nome não está lá como um fundador. Mas fui dos primeiros. Um dos fundadores foi o Rui Lebre, que ainda é vivo, já com 94 anos. Foi ele que encenou as primeiras peças. Quando fui com o Zeca assistir ao ensaio, ele perguntou-me “o que é que o senhor está a fazer aí? Venha para aqui”. Era preciso malta e lá fui eu para o palco. E lá fiquei. Aquilo era voluntariado, mas alguns com mais jeito até seguiram uma carreira. Eu tinha mais que fazer, tinha outras ocupações. Eu jogava basquete no Galitos e andebol no Beira Mar, no Alboi, num campo de terra batida. Antes tinha sido uma piscina, e era uma piscina jeitosa. Quando acabei a carreira continuei como treinador de basquete, fui treinar o Beira Mar, e nessa altura já havia pavilhão. Foi voluntariado, houve uma malta que fez o pavilhão - o sr. Ulisses Pereira, o sr. Alfredo Almeida, o José Manuel da Savecol, que jogou basquete e andebol comigo em Estarreja… Foi uma dúzia de indivíduos que puseram o pavilhão em pé. Mais tarde fui convidado para ir para Esgueira, para treinador. O campo, onde está o pavilhão agora, era de cimento, tinha poucas condições. E no Esgueira também fiz parte da direção. Fizemos lá um grupo porreiro e com a ajuda de um que fazia parte da direção, que era irmão de um vereador, lá deram um empurrão e puseram-se a fazer o pavilhão. E nessa altura do pavilhão foi quando eu saí. Na altura havia um rapaz que era árbitro do basquete, 

já faleceu, que era o Chico Ramos, de Ílhavo, que trabalhava comigo na Casal, e soube que eu estava livre. E o gajo uma vez na sala de desenho disse-me para ir para a associação, precisavam de malta na arbitragem. Eu tinha 30 anos de basquete e fui fazer mais 30 na associação de basquete. Entretanto reformei-me porque a Casal estava mais para fechar do que para continuar e eles convidaram-me para sair, a mim e a mais dois chefes de secção…

 

Que idade tinha?

Nessa altura tinha… [pausa] Ora bem, casei-me em… [pausa]

 

Ainda bem que a sua mulher não está aqui...

Se não já me estava a dizer “nem te lembras de quando casaste”… Casei-me no dia em que ela fez 25 anos. Ela tem 80 agora. Eu fui fazer exame à Casal em 65, foi quando eu vim de Estarreja para cá, onde trabalhei 28 anos. E em 69 casei.

 

Voltando uns anos atrás. Como foi a sua infância?

Foi normal, a jogar à bola no meio da rua, no largo das Barrocas, a nadar no Canal de São Roque… Toda a malta naquele tempo aprendia a nadar sozinha… A minha infância foi ocupada muito cedo pelo basquete.

 

Como era Aveiro nesse tempo?

Eu nasci e fui criado ali ao pé do Marabuto, ao pé da passagem-de-nível, que, entretanto, fechou. Enquanto a passagem-de-nível esteve aberta passava ali todo tipo de camião, a entrada norte de Aveiro era por ali. A cidade desenvolveu-se muito. Mau seria…

 

E como é que começou a trabalhar no Bóia e Irmão?

Foi a minha mãe que pediu lá a um indivíduo que se dava bem com o patrão. E eles queriam era miudagem para trabalhar.

 

O que é que fazia lá?

Era torneiro mecânico. Quer dizer, fui ajudar, fazia o que era preciso, o que me mandavam fazer. Depois comecei a agarrar-me às máquinas e tornei-me torneiro mecânico.

 

E ganhava algum dinheirito?

Ah, então não ganhava? Ainda era no tempo em que trabalhávamos de segunda a sábado, depois é que veio a semana inglesa e era uma paródia, foi a melhor coisa. Quando a malta saía da oficina, atravessávamos a ria e íamos para a Feira de Março ao sábado à tarde.

 

Quanto tempo lá trabalhou?

Nos Bóias estive desde os 14 anos aos 21, foi no ano em que o meu pai morreu. Depois fui para o Amoníaco.

 

E aí fazia o quê?

Era torneiro também.

 

E na Casal também foi torneiro mecânico?

Aí já não. Fui fazer exame para um torno e lá me puseram a fazer um fuso de rosca quadrada e tal... Era a minha arte. Quando me chamaram, a Casal estava nos princípios. Depois quando me apresentei ao serviço definitivamente, uns meses depois, eu já era chefe de secção, deram-me uma série de secções para eu tomar conta, desde tornos automáticos a tornos copiadores, retificadores… Não era o responsável principal, mas era o segundo.

 

Gostava do que fazia?

Ah pois gostava. Estava perfeitamente à-vontade.

 

Como era o senhor João Casal?

O João Casal era um tipo terra-a-terra. A empresa nunca devia ter fechado. Trabalhavam lá mil e tal pessoas...

 

Quando foi o 25 de Abril estava a trabalhar na Casal?

Estava. E estava a minha mulher grávida do segundo filho.

 

Como é que viveu o 25 de Abril?

Vivi primeiro a assistir aos congressos que se fizeram aqui, no Avenida. E ainda fui corrido uma vez, no terceiro, quando fizeram uma romagem à campa do Mário Sacramento. Vieram os cães, cum caraças… Foi uma aflição…

 

[I Congresso Republicano realizou-se em Aveiro em 1957, seguido do II Congresso Republicano em 1959 e do Terceiro Congresso da Oposição Democrática em 1973]

 

Andou a fugir da polícia?

Ai não… A maior parte fomos parar ao CETA. Fomo-nos lá refugiar. Tivemos algumas chatices no CETA… Com a PIDE, com a autorização para fazer ou não determinadas peças… Proibíram-nos algumas peças...

Logo no princípio do CETA, em 1959… Quem começou foi o Gaspar Albino, o Jaime Borges e um rapaz da Gafanha. Eles escreviam para o Litoral… Ensaiava-se no tal primeiro andar e a sala de espetáculos era o Aveirense. Houve algumas cenas porreiras. Por exemplo: os gajos quando viram um cartaz com um comentário do Mário Sacramento disseram “não podem representar”. E então, com o doutor David Cristo, que era o dono do Litoral, fizeram um novo cartaz e foi aprovado. E a partir daí o CETA  nunca mais parou.

 

O senhor é um homem de esquerda?

Sempre votei como esquerda.

 

No início do CETA, antes do 25 de Abril, a PIDE andava de olho em vocês?

De vez em quando passávamos uns filmes, os gajos do Cineclube. Fechávamos a porta e víamos umas coisas. Houve uma altura em que convidaram um tipo do Porto para fazer uma palestra e apareceram dois gajos, de chapéu. O sujeito do Porto conheceu-os logo. “Aqueles filhos da puta estão aí à porta”. Na segunda-feira, a direção do CETA foi chamada ao Governo Civil e nós ficámos todos à rasca. Mas eles disseram só “tenham lá cuidado com o que fazem, desta vez não há problema, mas não se adiantem muito prrré pé pé”. Deram o recado.

 

E tiveram espetáculos censurados…

Tivemos. Na maior parte dos espetáculos que iam para a censura eles cortavam o que não lhes interessava. Era o lápis azul. Mas na maior parte das vezes fazíamos de conta que não tínhamos dado por isso e representávamos tudo na mesma.

 

A sua vida como ator começou antes, já na escola…

Na escola entrei nas récitas. Com a minha professora de Português, que era uma entusiasta de teatro. Morava na Avenida 25 de Abril. A dona Ondina Leite. Numa das récitas até cantei.

 

Sempre foi uma pessoa extrovertida?

Sempre fui. Toda a gente se dava bem comigo. Ainda hoje. Não faço mal a ninguém. Se as pessoas me veem um bocado calado perguntam “Ó Arlindo, então não há uma anedota?” Quando me apanham é só sessões de anedotas…

 

Tem alguma anedota preferida?

Tenho muitas.


Quer contar uma?

Tinha de passar pela censura…

 

Está à-vontade…

Havia uns bailes em Esgueira que a gente fazia ao sábado quando eu lá andava, no salão da Junta de Freguesia. A gente chama-lhe o baile das sopeiras. Às tantas uma moça diz “sr. guarda, roubaram-me o porta-moedas”. “Roubaram-lhe o porta-moedas? E não sabe quem foi?” “Eu calculo que seja aquele senhor que está ali de bigode, mesmo em frente. Eu só dancei com ele, foi ele de certeza”. “Então e onde é que a menina tinha o porta-moedas?” Ela tinha uma saia com um bolso grande à frente. “Tinha aqui à frente”. “Então a menina estava a dançar com ele e não o sentiu a pôr a mão?” “Ó senhor guarda, eu sentir senti, mas pensei que fosse com boas intenções”.

 

Imagino que tenha uma grande coleção de anedotas…

Tenho um grande reportório e cheguei a fazer uns espetáculos. Eu fui rei do Carnaval em Ílhavo um ano e organizaram uma noite de anedotas… Foi um sucesso e mais tarde pediram para fazer outro.

 

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Tem ideia de quantos espetáculos fez no CETA?

Foram 50 anos… Sempre que havia teatro, eu praticamente entrava sempre. Num papel pequeno ou num papel grande, estava sempre disponível.

 

50 anos de CETA é um número impressionante…

50 anos há dez anos, agora são 60.

 

Além de ator alguma vez foi dirigente?

Uma vez fui presidente. Foi só um reinado, não havia ninguém que queria e eu disse “eh pá isto não pode parar agora”.

 

Qual foi a peça que mais gostou de fazer?

Nós fazíamos espetáculos sem computadores e sem as tecnologias que há hoje… Antes do 25 de Abril havia um concurso do Secretariado Nacional de Informação. Corriam o país a visitar os grupos de teatro que se inscreviam e classificavam e escolhiam aqueles que iam a Lisboa, ao Teatro da Trindade. Fui lá mais que uma vez. A malta fez “O lugre”, do Bernardo Santareno, e aquilo estava com muita pinta. Vieram cá ver e imediatamente nos classificaram para irmos a Lisboa. Já tínhamos ido antes com “À espera de Godot”. Com “O lugre” éramos uns 20 gajos, só homens. Acabou o espetáculo e a malta põe-se de pé a bater palmas e começam a chamar o Santareno. A malta não sabia que o Santareno estava lá a assistir. Eu vejo um sujeito de óculos, frágil. Cumprimenta-nos e diz estas palavras que eu nunca mais me esqueci: “Muitos parabéns, já vi esta minha obra representada por várias companhias, entre as quais o Teatro Nacional, e é a primeira vez que a vejo representada com toda a poesia com que eu a escrevi”. Ora toma. E o Rui Lebre, que a tinha montado, estava ali mesmo ao lado. E nós ganhámos. E ganhámos esse prémio umas quatro ou cinco vezes. No ano seguinte, para ver que aquilo era feito a sério – ainda hoje se fazem coisas a sério no CETA, não andamos ali a brincar -, a malta volta a inscrever-se com “O diário de Anne Frank”. Tínhamos uma moça, que agora é uma senhora com uns 70 anos ou o caraças, que andava a estudar no liceu e tinha um jeitão do caraças para aquilo. Veio o júri e deu-nos logo a entender que era um bom espetáculo para ir para Lisboa e nós começámos logo a preparar as malas. Mas uns dias antes veio uma carta dos gajos: ganhas uma edição e já não podes participar na seguinte. Ficámos desanimados e tal, e andámos a fazer espetáculos por outros lados, dávamos a volta ao distrito. Até que chega um telegrama: “avancem com ‘O diário de Anne Frank’”. Aquilo é que foi… O júri exigiu que nós lá fôssemos extra concurso. E nós lá fomos.

 

E qual foi a última peça que fez?

Foi uma peça que eu encenei com um grupo de malta, quando começou a covid. Chama-se “O roubo das joias”. Eu era a velha a quem tinham roubado as joias. Foi em 2020. Mas esta peça não foi representada no CETA, foi no Estaleiro. E tenho outra peça escrita.

 

Considera-se um bom ator?

Não. Sou um desenrasca. Mas fiz papéis porreiros… Fui convidado a ir ao Porto participar num espetáculo no Carlos Alberto, por uma companhia sem poiso, era onde calhava… Precisavam de um gajo de idade e eu andei lá três meses. Fazia de velho que ficava fechado numa estação de metro. Pagavam-me 30 contos por mês. 30 contos era muito dinheirinho. De resto, fazia os papéis que era preciso fazer.

 

Deve ter vários episódios da sua vida artística. Lembra-se de algum em particular?

São coisas que ficam… Uma vez o D. Duarte Pio [chefe da Casa Real portuguesa] veio a Aveiro e fizemos uma recriação histórica, organizada pela Câmara. Puseram-nos num comboio dum museu, não era um comboio qualquer. Um funcionário não nos deixava pôr a mão em sítio nenhum, era só veludo. Estava tudo cheio de gente, na estação e por lá fora. Instalaram dois palanques grandes para o rei, a rainha e os filhos, o presidente da Câmara, o bispo… Eu era o rei e fiz um discurso dirigido ao povo. A rainha era uma aluna do último ano do liceu, na Homem Cristo, que depois foi para Lisboa e nunca mais a vi. Da estação fomos transportados por uma catrefada de carruagens puxadas a cavalo até à Câmara e quando lá chegámos o reizinho [D. Duarte Pio] veio ter comigo e disse “a sua bênção, meu tio”. Estava montes de gente, com as janelas cheias de colchas… Foi uma coisa gira.

 

O que é que faz agora, como ocupa o seu tempo?

Estou por casa, vou ao café falar com os amigos, uns jantares…

 

Tem dificuldades de locomoção, vê mal… Como lida com o seu definhamento físico?

Oh pá, os amigos estão sempre prontos para as ocasiões. Não é por isso que deixo de ir ao café todos os dias. Custa um bocado, mas vou andando.

 

Quando acabamos de conversar, quase duas horas depois de nos termos sentado, já é quase hora de almoço. É agora a minha vez de o devolver a casa. Vai agarrado ao meu braço e avançamos de forma vagarosa – cada passo é uma pequena conquista. Vai falando da vida – da família, dos problemas de visão, do teatro, do basquete. Quando chegamos ao seu prédio, a porta está aberta e uma vizinha cumprimenta-o. O resto do caminho, até à entrada de casa, fá-lo sozinho – as pernas têm memória. O corpo é um invólucro já muito estragado, mas a cabeça conserva a jovialidade de sempre. A vida nem sempre é uma anedota, mas vivê-la com leveza é um bom antídoto contra o definhamento. “Para a próxima conto-lhe mais uma”, promete.

 

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1 Comentário(s)

manuel pereira pacheco
25 abr, 2025

dar voz ao arlindo silva quem já tem deficiente visão mas com uma memória ainda fresca, é um extraordinário exercício de cidadania. bem hajam.

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