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As nossas memórias não se apagam

Opinião

 

Estou a tomar o pequeno-almoço no meu café preferido de Newcastle Under Lyme, um Coffee Shop de esquina na parte velha da cidade que frequento pelo simples motivo de que todos aqui me sorriem quando peço um chocolate quente com marshmallows.

Vivo nesta cidade há três anos, pelo que para mim esta esquina sempre foi este café. No entanto, a duas mesas de mim, uma senhora cuja idade deve ser mais ou menos a minha, conta a uma criança que há três décadas trabalhou neste mesmo espaço a vender sapatos. Vai descrevendo ao rapaz, que deve ter uns seis ou sete anos de idade, como era a vida naquele tempo.

Naquele tempo o meu pequeno-almoço era sempre um copo de leite com chocolate e algum pão ou torradas com manteiga, dependendo se o pão ainda era fresco ou os dias da semana já o tinham endurecido. O leite vinha numas garrafas de vidro reutilizáveis, com uma tampa vermelha presa por um arame. 

E então numa manhã eu tinha terminado a última torrada e dado o último gole num grande copo de leite quando o meu avô entrou na cozinha e me perguntou se eu queria ir com ele comprar dois mochos, um para mim outro para o meu irmão. Os meus olhos de criança abriram-se ao máximo para deixar entrar a alegria daquela surpresa inesperada. 

-      Claro que sim, avô!

Não sei o mês nem o ano em que isto aconteceu, mas sei que foi no dia 28, já que era a Feira dos Bintoito, como com ternura lhe chamavam os aveirenses. Terá sido nos anos 70, porque naquela altura ainda se realizava no Rossio.

O Rossio era, na verdade, o coração palpitante da cidade, apesar de ainda nem sequer ser um jardim mas apenas uma área de terra batida onde todas as ruas e vontades da cidade desaguavam. A estátua de João Afonso de Aveiro, no entanto, já lá estava num pedestal a vigiar quem passava, entre algumas árvores que guardavam segredos das noites da cidade.

A zona era repleta de cafés, geralmente cheios de clientes que liam o Primeiro de Janeiro ou o Jornal de Notícias à vez e comentavam as novidades que ali chegavam apenas com um dia de distância. Uma boa parte da clientela era constituída por militares novos que cumpriam o serviço militar obrigatório no Batalhão de Infantaria de Aveiro e tinham licença para sair do quartel. 

Da nossa casa no Bairro do Liceu até ao Rossio eram uns trinta minutos a pé, sem contar com os outros trinta minutos que o meu avô perdia a cumprimentar conhecidos, aos quais normalmente ainda dava um ou dois dedos de conversa. 

Nessa altura o meu avô tinha uma nota de quinhentos escudos guardada num compartimento especial do seu porta-moedas, porque a tinha encontrado no chão durante um dos seus passeios solitários pela cidade, já que a bengala de madeira do meu avô, com a qual ele gostava de fazer cócegas ao mundo enquanto caminhava devagar, era melhor do que um detetor de metais. Com ela ele encontrava tudo, fosse dinheiro ou tempo para os seus monólogos. E então perguntava a todos aqueles que se cruzavam com ele se tinham perdido dinheiro. A resposta era invariavelmente a mesma.

-      Não perdi nada, senhor. Obrigado por perguntar.

Naquela manhã a desilusão chegou quando percebi que os mochos não eram aves de rapina mas sim dois bancos feitos de pinho. O meu avô discutiu o preço com o vendedor por considerar que oitenta escudos por cada um era muito e acabou por os conseguir por setenta. Para mim, no entanto, já nada interessava a partir do momento que a esperança de ter dois animais em casa dera lugar a dois bancos de madeira.

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Talvez eu tivesse uns seis ou sete anos de idade e por isso é esta a primeira memória que tenho do Rossio, que prezo muito por nela estar o meu avô. O Rossio transformou-se entretanto num bonito jardim rodeado de palmeiras onde me apaixonei algumas vezes e contei esta história de peito feito aos meus passageiros amores da juventude.

A cidade mudou muito desde então. Os militares deram lugar aos estudantes, os cafés deram lugar a pastelarias ou bancos, o Rossio foi transformado num túmulo de cimento que cobre um parque de estacionamento vazio e até a estátua de João Afonso perdeu o pedestal.

A senhora que está a duas mesas de distância de mim levanta-se e veste um caso quente à criança a quem acabou de contar o passado. Vão-se embora, mas antes de irem ela despede-se de mim com um sorriso. Perdi-lhe o fio à meada embrulhado pelas minhas memórias de Aveiro. 

Sorrio-lhe também e digo um “bye” meio que tímido. Temos uma coisa em comum. As nossas memórias não se apagam.

 

* Texto originalmente publicado na revista comemorativa do sexto aniversário da Aveiro Mag

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